domingo, 22 de maio de 2011

Meu lugar de revolta gelada

Ele era o frio


Da mão, dos olhos, do corpo encolhido,
do chão pra dormir, da solidão extrema,
do cotidiano sofrido

"Uma moeda, uma coberta"
Discussões sobre arte,
O futebol na televisão,
Tudo, antes dele, despertava a atenção

"É que eu durmo na rua, fia"
E puxa a cadeira.
Uma mão entre duas - esquenta?
Dois minutos de atenção? - esquenta?
Um bocado de palavras trocadas - esquenta?
(olhos nos olhos, olhos para baixo) - esquenta?
Deus, Jesus olhando, cuidando - esquenta?

Uma blusa esquenta mais
que a minha vontade - angustiada e guardada - de explodir de chorar
Esquenta mais
que a minha raiva - angustiada e guardada - da lógica do mundo
E mais ainda
do que o olhar, cuidado desse Deus, Jesus que lhe sobrou

Ele era o frio
E cadê o calor a que ele tem direito?

sábado, 30 de abril de 2011

Poemas de um manual para habitantes das cidades

4.

Eu sei de que preciso.
Eu simplesmente olho no espelho
E vejo que devo
Dormir mais; o homem
Que tenho me prejudica.

Quando me ouço cantando, digo:
Hoje estou alegre, isso é bom para
A tez.

Eu me esforço
Em permanecer saudável e firme, mas
Não me cansarei; isso
Produz rugas.

Nada tenho para dar, mas
Minha ração me basta,
Eu como com cuidado; eu vivo
Lentamente; sou
Pelo caminho do meio

(Assim vi gente se esforçar.)


Bertolt Brecht

Meu não-lugar de classe

Ela era a fome.


Os olhos cruzados eram medo
E fome
E cansaço
E guerra.

Batalha violenta de fomes
em tempos de anestesia
Luta do mínimo
em tempos de cegueiras

Na disputa: nenhum toque
[nem sei se é quente ou fria a fome]
Só palavras - mentiras trocadas
... e aqueles olhos

Com o plástico partido,
rasga-se a couraça, estoura-se a bolha, frágil, frágil.
A fome me estoura e me vira
irremediavelmente
pra dentro

Ela era a fome.
Quem eu era?


28 de maio de 2011 - São Paulo - caminho de casa


quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Caderninho de pequenas frases

Engraçado como a vontade de escrever - dessas de quase explodir - vem quase em dois momentos: quando viajo e quando me sinto só.


Marcello, Cello, Stela, esse menino doce que me apareceu em 2010, me presenteou com um lindo caderno preto-básico que já tem algumas citações...

"Portanto, não é surpreendente que na concepção marxista a "efetiva transcendência da auto-alienação do trabalho" seja caracterizada como uma tarefa inevitavelmente educacional" (István Mészáros, lido no vôo, 16/8/10)

"Minhas saudades são sempre imediatas. Por que passamos tanto tempo com pessoas medíocres e tão pouco com as encantadoras?" (eu, 21/8/10, despedida de Celina, Recife - Boa Vista)

"O socialismo tem que ser assim... alegre, festivo, com cara de Brasil. Não pode ser duro e carrancudo" (Celina, 21/8/10 - Recife - para ser lido com sotaque)

"A que ponto chegou a humanidade se pras pessoas dividirem as coisas elas precisam ser obrigadas" (Celina, 17/1/11, sobre a ideia de "ditadura"em Cuba, cujos ideais e cuja prática cotidiana ela conheceu possivelmente nos melhores tempos - Piolin, São Paulo)

Eu pequeno-burguesa

Um produto, um tipo

Eu sou um monte de fragilidades
+ um monte de dúvidas
Algum encantamento
+ um punhado de esperança...

Eu sou um monte de afirmações
Um monte de tentativas
+ um bom tanto de voltas atrás
e outro tanto de frustrações

Eu sou um monte de enormes medos
+ um poço bem fundo de desejos
Cheinha de um grande vazio
E + um conjunto de respostas prontas que eu mesma desconstruo

Eu sou, enfim, mais uma dessas muitas

Dessas que procuram, cegas, arrumar em algum lugar algum sentido pra vida maior do que esse pouco sentido que ela de fato tem. Depois, pouco depois, meio enfraquecida da ressaca, do trabalho ou da dor de garganta... desiste... joga um olhar melancólico para a vida e vai brincar de esconde-esconde com o gato.

(Escrito entre 17 e 18/1 depois de mais um encontro transformador com a pessoa que mais me inspirou até hoje. Dela, falaremos mais...)