quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

A incrível história de uma palavra sendo dita e escutada

quando uma palavra
alcança o ar do mundo...

seu nome é (pode ser) salto,
seu nome é (pode ser) queda,
seu nome é (pode ser) vôo.

seu nome é DANÇA.

é o contrário do desaparecimento, da sobrecarga, da planilha,
é o contrário da MORTE.

*

morrer é não ser nomeado

*

quando o ar do mundo
percorre o labirinto...

[inventa um caminho no ouvido, cara contra o muro, martelada contra o muro, abre frestas, ressoa festas, chega]


seu nome é (pode ser) chama,
seu nome é (pode ser) jardinagem,
seu nome é (pode ser) água
seu nome é PALAVRA.

é o contrário do fechamento, da seca, da privada entupida
é o contrário da MORTE.

*

morrer é não ser escutado

*


Se há alguma chance de cura, ela brota na partilha.


sexta-feira, 27 de março de 2020

Por um fio - poema para uma carta de condomínio

Caiu uma planta
Um vaso
Caiu

Espatifou-se
Desequilibrou-se
Atirou-se do parapeito
Estava por um fio,
Caiu

*

Caiu uma lágrima
Um ser humano
Caiu

Espatifou-se
Desequilibrou-se
Atirou-se do parapeito
Estava por um fio
Caiu

Na verdade, não.
Espera.
Balançou a planta ao vento
Silêncio.
Estava por um fio.
Mas não caiu.
Manteve-se ali, intrusa, no alto do prédio mais alto do quarteirão da cidade mais populosa do país do cinza mais cinza dos cinzas
Abusada
Contra todo o minucioso padrão definido pelo humano.
Abusou, ficou, floresceu.

*

Balançou a lágrima ao vento
Grito.
Estava por um fio.
Mas não caiu.
Manteve-se ali, adequado, um humano no alto do prédio mais alto do quarteirão da cidade mais populosa do país do cinza mais cinza dos cinzas
Obediente
Garantindo todo o minucioso padrão definido por não se sabe quem.
Obedeceu, ficou, envelheceu.

Na verdade, não.
Espera.

Chegou uma carta
Por debaixo da porta, pelo carteiro, na caixa de Correio.
Veio.

Chegou uma carta endereçada a um humano
Um plano
Ordem, pedido, para que tirasse urgentemente
Qualquer vestígio de folha, flor, fruto, semente
Da frente
do padrão do alto do prédio mais alto do quarteirão da cidade mais populosa do país do cinza mais cinza dos cinzas
Uma carta-bomba
Sem nome
Sem planta
Sem qualquer vestígio de folha, flor, fruto, semente
Sem gente
Uma carta feita de papel-árvore sobre o qual se rabiscavam códigos com lápis-árvore
Demandando urgentemente o fim daquele abuso de natureza
Porque estava a humanidade por um fio
O risco de balançar ou cair o padrão...
Não pode, não.
Não permita, a qualquer custo que seja,
Que vaze da sua janela um vaso de natureza
O padrão não saberá lidar com a beleza
E tudo estará por um fio...

*

Chegou um humano,
Descendo as escadas, carregando uma bicicleta, acionando o freio.
Veio

Chegou um humano endereçado a uma carta
Um levante
Resposta, pedido, para que se repensasse urgentemente
Essa falta assustadora de folha, flor, fruto, semente
E nome
E planta
E gente
Essa falta de endereço e humanidade.
Um humano feito de carne-árvore, pele-árvore, pensamento-árvore
Demandando urgentemente o fim daquele abuso de humanidade
Porque estava a natureza por um fio
- não! Parafusada na parede estava! -
Alertando para o risco de não balançar, de não livrar-se do padrão
Prisão do não.
Permita, uma única vez, a qualquer custo que seja,
Que salte da sua carta uma palavra de gentileza.
O padrão saberá render-se à beleza,
E tudo estará de novo, ufa, por um fio...

Na verdade, não.
Espera.

Chegou mesmo uma carta anônima que pedia ao humano que tirasse urgentemente as plantas da janela porque o risco de espatifar o padrão ou a cabeça de alguém que passasse desavisado por debaixo da beleza não podia ser colocado e aquela planta por um fio colocava por um fio o padrão, o risco, o edifício, a cidade, a humanidade e a pessoa sem nome que a escrevera com papel-árvore. A carta balançou ao vento, beijou a planta, sendo de novo árvore. O humano trouxe a natureza pra dentro - parafusada que estava na parede, foi custoso o movimento. Chamou também o Sol pra dentro e aquecido despediu-se do papel-árvore que voltou à sua anônima origem, ao sem nome, sem Sol, sem natureza dentro, pra dizer que não se preocupe, humanidade, o padrão está intacto. A humanidade... bem, essa está ainda por um fio. Menos aqui, com Sol e natureza dentro, e vento, muito vento, muito muito vento, desses de ventar e espalhar semente de pensamento.

sábado, 9 de fevereiro de 2019

ar

ar ar ar ar ar

ar ar ar ar ar

ar ar ar ar ar

ar ar ar ar ar

para ativar o faro
farejar as mínimas brechas,
cheirar cada migalha
reconhecer territórios e pares

ar ar ar ar ar

para recuperar o fôlego
e voltar inspirado
ao próximo round
ao próximo ato
ao contra-golpe
ao poema-salto
à rebelião
e à formação
dos rebelados

ao próximo
    outro
à próxima margem
à próxima terra
à próxima criação
ao próximo encontro
ao presente
que já grávido,
tem cheiro de logo mais,
aquele cheiro de bolo no forno

que presentifica o sabor do daqui a pouco

quinta-feira, 19 de julho de 2018

Poemar

Utopia


Gosto de pensar em você
Como se fosse uma ilha
Que ninguém nunca tocou
Mas que se pode ver
De todos os lugares
Terra inédita
Sem pegadas
Nem digitais


Gosto de pensar em inéditos
Que se movem
Sem se afastar


Gosto de pensar no sabor
Dos frutos desconhecidos
E no calor das sombras
Desenhadas no teu corpo-ilha
Por árvores centenárias


Gosto de pensar em teus grãos
De areia de toda cor
Preenchendo meu corpo
Como partículas de delírio
Invisíveis
Que eu posso carregar comigo no ônibus
Sem precisar explicar nada pro cobrador
Nem ocupar o espaço de outras


Gosto de pensar nas grades
Que não te cercam
Nos seus longos braços
Que abraçam qualquer horizonte
Nos seus olhos-ponte
No fogo que aceso nas suas entranhas
Escapa pelas pontas dos seus dedos
E incendeia partes de mim
Como se as inaugurasse


Gosto de pensar na tua brisa
Que suspende saias e fronteiras
Ignora barreiras
E acaricia suave
As cicatrizes das lutas antigas
Secando a última lágrima
Que resume um oceano de tentativas


Gosto de pensar nos teus picos
Ávidos por tocar o céu
Capazes de vencer terremotos
Espelhos do desejo de tantos
Que se sublevaram
Por menores que fossem as chances
De atingir o cume


Gosto de pensar em você
Sendo ocupada por multidões
Lenços brancos que saltam
De uma esquadra incontável
De barquinhos de papel
Ancorados com doçura em suas margens
Transportando com coragem
A memória derretida da fibra de outros tantos
Barquinhos que não resistiram às chuvas
E se despediram antes
De poderem lamber sua areia e
Coabitar promessas novas.


Gosto que pensar que cada onda
Toda mínima onda de todos os mares
À esquerda do mundo
Balança em sua direção
E quase não importa que não chegue nunca
Porque de algum modo chega.

***

Ainda onda


Olhava o mar
Como se visse a si mesmo
E lesse nas ondas linhas tortas
Escritas por ninguém


Olhava inteira
Sem óculos, sem medo


Poderia calmamente afogar-se em si.


Ainda seria onda


***


Se fez
Vem água, vai areia
E a terra de que somos feitos
Se dilui em onda


Somos o curso do rio
E somos também suas curvas
As mais elegantes
E as mais tortas
As mais rebeldes
E as mais mortas


Somos o barco que manobra
E somos também o náufrago
O mais só
E o mais completo
O mais augústia
E o mais paz


Somos a vela que dança
E somos também o vento
O real mais invisível
E o impossível mais sentido
O perfeito mais movido
E o passageiro mais presente


Vai areia, vem onda
E a água de que somos feitos
Se dilui em terra
E assim se fez.

***


Visita

Tem dias em que é preciso caminhar juntos
Tem manhãs em que é preciso soltar as mãos
E caminhar pra longe
Bem longe
No caminho de dentro


E voltar
Novo
Exausto
Depois de ter se visitado.

***
O sonho do mar
(Com Viola Aires Monteiro, que tem nome de música, vento e montanha)


O caseiro que cuida da ilha
É um caseiro ou um ilheiro?
Um casilheiro será.


E quando você menos espera,
No céu estrelado,
Ali! Do outro lado!
Um satélite-avião
Um satelitião
Vai quase quase
Ai, ui, uhhhh
Riscar o raio
Da Estrela Dalva
Que de soslaio
Vai dar um salve!
E dizer pra ele
Não vir satelitar aqui, não!


E quando você menos espera,
O rio Gela-Canela
Sobre, desce e se revela
Um incrível congelador de dedo mindinho e de dedão
E grande aquecedor das aventuras do meu coração


_ Ah! Até que foi bão!
A rima do dedão
Com o coração
_ Não ficou ruim, mesmo, não?


A dona Universa, rindo da rima ruim,
Fez o vento bater na prancha,
Que jogou areia no verso,
E puxou os olhos da criança,
Que viu a hora exata
Em que o mar gelado
Pegou uma pegada
E fugiu pra ilha,
Que ilha, minha filha?
Aquela ali do lado!
Cheia de passarinho e mato!
No formato de um sapato


Tira o sapato
Pisa na areia, na concha
Ai!
Reclama, faz drama
Faz da areia sua cama
Quentinha….
E sonha
Que o sonho do mar

É molhar seu sonho de infância.

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Argentinas e eu

Os argentinos são generosos
Os argentinos são pessoas sem pernas que entregam cartões românticos no trem escrito "com você tudo é mais fácil" enquanto as gotas de suor descem no lugar das lágrimas.
Os argentinos são mendigos que doam moedas de um peso para outros pedintes, como que para deixar suas próprias vidas mais leves.
Os argentinos são pessoas que falam alto e têm filhos gêmeos que parecem uma pintura.
Os argentinos são pessoas que sabem sentar na grama sem canga e sem seres picados por formigas.
Os argentinos são pessoas que te oferecem chocotorta e assim sequestram seu coração para sempre.
Os argentinos são viajantes sérios em ônibus clownescos, com franjinha e pluma e led.
Os argentinos são pessoas que vão ao trabalho dentro de um busão que o Signey Magal ganhou do Sandro.
Os argentinos são mulheres que se equilibram em plataformas circenses disfarçadas de sapatos e usam garrafas de água congeladas para lembrar do inverno nos 38 graus de um janeiro.
Os argentinos são crianças que entendem português com o corpo, brincam de esconde-esconde "às escondidas", amam-se à primeira risa.
Os argentinos são mães que oferecem panqueques con dulce de leche como quem oferece bolachinha água e sal.
Os argentinos são pessoas que compreendem profundamente o doce de leite.
Os argentinos são pessoas que tomam vinham bom com gelo e acham que tudo bem.
Os argentinos são pessoas que fazem pão quando pensam fazer pizza e fica realmente muito bom.
Os argentinos são pessoas com o sentido de comum mais aguçado pelo toque republicano da grama dos parques em suas bundas.
Os argentinos são peruanos e bolivianos.
Os argentinos são mais chilenos do que gostariam os chilenos.
Os argentinos são mães que os milicos mandaram circular e que, em sua inteligência poética, até hoje circulam, todas as quintas-feiras, ao redor do monumento na Praça de Mayo, que já é delas por honra e direito, e onde - com suas vozes, cadeiras de rodas e sorrisos - podem inventar a presença sob qualquer crise, caminhando lado a lado com o tempo, vestindo seus lenços-pájaros.
Os argentinos são filhos de militantes assassinados criados por militares assassinos.
Os argentinos são pessoas jovens que presas ao lutar pelos direitos dos aposentados e mantidos presos por não terem o endereço fixo da casa onde não podem dormir porque não trem o trabalho para ter o dinheiro para pagar p aluguel para alguém que tem dinheiro para ter mais de uma casa.
Os argentinos são milionários que tem casas-bosque com barco na garagem e vista para o rio Tigre e sao miseráveis que se abrigam em barracos na margem da ferrovia que leva turistas para verem as casas dos ultra-ricos em passeios de catamaran promocionais.
Os argentinos são também a boniteza do Delta do Tigre e seu vento e das mil cores do pôr do sol que se esconde atrás de pastos, mansoes, casinhas e janelas de trem.
Os argentinos são aquela dança sensual que nasceu com as putas do porto latinoamericano e depois passou a ser dos guias turísticos que levam europeus que atravessaram o oceano para irem a cafés disfarçados de cafés europeus - e que no entanto segue sendo dançada no porto, na rua, nas bodegas livres dos dólares e dos chetos.
Os argentinos são a água que salta do chão nas praças e parques em direção as caras sorridentes das crianças e aos narizes incomodados dos perros.
Os argentinos são caipiras de Córodoba e caiçaras de Mar del Plata que se mudam a Buenos Aires e transformam pedacinhos da capital em cidadezinhas acolhedoras em torno de sua simpatia e de seus abraços com vida.
Os argentinos desenham a luta e a memória nos muros da cidade.
Os argentinos lutam como argentinos e perdem como latinoamericanos, colonizados e recolonizados de novo e de novo e de novo, e rebelados de novo e de novo e de novo.
Os argentinos são pessoas que atiram pedras, quebram coisas, cheiram gás lacrimogênio, tomam coca-cola, odeiam a coca-cola, sonham acordados e dormem exaustos.
Os argentinos sou eu.

(Os argentinos são muito mais coisas do que o que eu consegui ver em 20 dias de Buenos Aires. Considere isso ao ler.)

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Tempo de São Paulo

O tempo de São Paulo
furou a sola do meu tênis preto

O tempo de São Paulo

fechou a porta do trem antes da bicicleta vermelha sair

O tempo de São Paulo
desgastou meu esqueleto na altura dos joelhos

O tempo de São Paulo
descarregou minha vontade de explodir os relógios

O tempo de São Paulo
afogou minhas palavras

O tempo de São Paulo
mofou a goiabada da minha vó na geladeira

O tempo de São Paulo
magoou as paredes do quarto que falta

O tempo de São Paulo
despertou o fascista que mora dentro do meu vizinho

O tempo de São Paulo
encharcou o rio sujo dos meus olhos diante do absurdo

O tempo de São Paulo
quebrou meu guarda-chuva de 10 reais e me deu 10 espadas

O tempo de São Paulo
confiscou os cobertores da campanha do agasalho para aquecer as pistolas militares

O tempo de São Paulo
estourou minha caneta dentro da bolsa e manchou a história

O tempo de São Paulo
neblinou o verso que pensei quando vi aquele bueiro e depois esqueci

O tempo de São Paulo
apressou o passo pra dentro do terraço gourmet

O tempo de São Paulo
trancou as crianças no play

O tempo de São Paulo
derreteu o sorvete mexicano com sotaque francês

O tempo de São Paulo
nevou os cabelos da moça que não tem nem 32

O tempo de São Paulo
roeu minhas unhas

O tempo de São Paulo
atropelou o filho que eu não quis ter

O tempo de São Paulo
pegou o busão errado, cochilou no metrô e foi parar no terminal

O tempo de São Paulo
caiu da escada, encalhou na catraca, derrubou o chocolate no trilho do trem

O tempo de São Paulo
deve estar com gastrite, mas talvez seja úlcera, daquela coxinha com Coca

O tempo de São Paulo
perdeu a chance de dar bom dia, boa noite, boa sorte ao outro corpo

O tempo de São Paulo
congelou a cerveja

O tempo de São Paulo
dormiu no meio do Godard

O tempo de São Paulo
sofre de rinite, mas talvez seja sinusite, com asma e um pouco de orgulho

O tempo de São Paulo
quer comer melhor amanhã

O tempo de São Paulo
Pesa a cebola para fazer um chá mágico

O tempo de São Paulo
cochila na ressonância e espasmos

O tempo de São Paulo
hiberna durante o verão e segue exausto.

E o copo repousa - ao lado do caderno amarelo

domingo, 25 de junho de 2017

O ipê rosa da minha infância

Quando olho a foto do ipê, 

enfeitado de céu azul 
acompanhado de estradinha 
e bastante bosta de vaca invisível a olho de whatsapp,
o ipê não me olha.

O ipê não olha pra mim.
Nem ele, nem o céu azul, 
a estradinha, a bosta de vaca, 
a vaca mesma,
e o barranco,
e o capim,
nenhum deles olha pra mim.

Cada pedaço desse chão de vó tatu
olha pra quem eu fui
e fui sendo

olha pro pedaço de pessoa 
que sem nem pensar atirou-se à terra
à água
à jabuticaba
ao vento

embaraçou loucamente os cabelos,
[pra vó desembaraçar com a paciência de quem conhece o tempo]
enraizou todo seu futuro
na sabedoria que só tem quem amassou barro com as mãos 
pra nada.

só pra sentir o molhado da terra penetrar a pele
invadir o ser e fazê-lo natureza de novo

sabedoria de início.
pisar na terra e deixar-se ser árvore
e crescer, florescer, partir em direção ao céu azul,
sem deixar de ser chão.

como sou ainda uma menina com os pés neste barro sob este ipê? 
décadas mais tarde
décadas mais urbana
décadas menos tempo
décadas mais medo
décadas mais trabalho
décadas mais disciplina
décadas mais amores
décadas mais lágrimas
décadas mais viagens
décadas mais países
décadas.
e sou ainda.
um broto do ipê rosa da minha infância.