sexta-feira, 20 de junho de 2014

não deu tempo de fazer o arroz

Num galpão, chão sujo.

_ Não deu tempo de fazer o arroz!
_ A gente ajuda!
_ Cês ajuda?

E, de repente, a gente é.

Lugar de comer, de cantar,
e de dividir a aguda falta completa de sentido
tão cheia, ao mesmo tempo, dessas coisas
                                                       tipo alface,
                                                       tipo amor,
                                                       tipo doce de leite orgânico,
                                                       tipo janta,
                                                       tipo gente,
                                                       tipo vida.  

casa

minha casa
é meu corpo
expandido
sem controle

uma flor que murcha - um fio de cabelo que embranquece
uma louça mal-lavada - uma alma imunda
roupas jogadas - projetos no armário
lençóis amassados - amores entrançados

*

como será que fica um corpo
quando a casa vai pro chão pra dar lugar à Copa
                                                               ou a mais um terraço gourmet do mais novo empreendimento?  

domingo, 8 de junho de 2014

um presente

da flor
fez-se luz
presente

da luz
fez-se memória
quente

pra nunca mais esquecer
pra não mais perder de vista
que amor
é vela
movimento da chama com o vento
calor e boniteza tomando as ruas de dentro da gente

é um ronronar morno
porteiro do sofrimento
que só deixa passar pipoca e nutella

e um dependurar-se
pra se atirar
em võo livre
sem rede, sem drama

o resto
é loucura.
e é menos.

passa

passa praça atrás de praça
e gente - tanta!
dentro e fora da praça
dentro e fora da gente

passa hora atrás de hora
e as (dis)posições - tantas!
radicalizam, depois suavizam
buscam alento, depois movimento

passa vida atrás de vida
e os desejos - tantos!
envelhecem e esperançam
perdem a paciência,
ganham pernas,
desenham caminhos,
borram na hora de pintar.


sábado, 7 de junho de 2014

Dilúvio

E um dia chegou o dilúvio.
Surpreendeu quem é de ser pego de surpresa.
Quem é de prestar atenção, já esperava - em silêncio respeitoso.

Durante 168 horas,
o céu de fez água
e a água cobriu, docemente, tudo.

Em botes,
religiosos de todas as linhas
criavam suas Arcas sem Noés
e naufragavam
à primeira onda

Caminhando sobre as águas,
profetas da Praça da Sé
sentiam finalmente o divino
e, sem ter com quem compartilhar,
ficavam inacreditavelmente mudos
e mudos choravam seco
em vez de gritar.

Boiando de bruços com seus headsets,
atendentes da Claro
explicavam o inexplicável
- estamos com problema de conectividade nacional" -
para clientes ilhados
antes de se afogarem,
cada qual do seu lado,
da linha.

Em pontos estratégicos,
Muleques de rua jogavam água pra cima
Sapateavam,
E riam tanto, já debaixo d'água,
que as bolhas de ar que se formavam
faziam crer que aquelas poças gigantes
ferviam
de calor humano.

Equilibrando-se sobre os tetos das casas, nas pontas-de-telhado-icebergs,
palhaços enrolados em toalhas floridas
envoltos em bóias de pato,
declamavam "garoa do meu São Paulo"
e escreviam no ar
"sorria, você está num mundo novo".
Depois, soltavam água pela boca
ao mesmo tempo em que mijavam mirando o céu
num duplo chafariz
que formava arco-íris
e potes de ouro
pra ninguém ver.

Na Prefeitura transformada em aquário
os quadros com as caras de governantes escrotos
boiavam como peixes mortos
de indigestão
de tanto comer o que é de todos
No jardim - lindo! - da cobertura do edifício,
o peixe-Prestes-Maia, balofo,
via com olhos arregalados de estupefação
manifestantes-rios tomarem de volta suas ruas-leitos
em festa molhada.

No meio das ondas festivas
dava pra ver tamanduás de todas as cores
batucando marchinhas de Carnaval
ao lado de foliões-gente recém afogados
e contentes
por poder ver o justo antes do nada.

Quando a maré finalmente baixou,
não tinha mais nada.


"A água é o sangue da terra",
ouvia-se, ainda, esse pedaço do canto dos afogados.
E no ar lia-se, piscante, a mensagem dos palhaços:
"sorria, você está num mundo novo"