sexta-feira, 27 de março de 2020

Por um fio - poema para uma carta de condomínio

Caiu uma planta
Um vaso
Caiu

Espatifou-se
Desequilibrou-se
Atirou-se do parapeito
Estava por um fio,
Caiu

*

Caiu uma lágrima
Um ser humano
Caiu

Espatifou-se
Desequilibrou-se
Atirou-se do parapeito
Estava por um fio
Caiu

Na verdade, não.
Espera.
Balançou a planta ao vento
Silêncio.
Estava por um fio.
Mas não caiu.
Manteve-se ali, intrusa, no alto do prédio mais alto do quarteirão da cidade mais populosa do país do cinza mais cinza dos cinzas
Abusada
Contra todo o minucioso padrão definido pelo humano.
Abusou, ficou, floresceu.

*

Balançou a lágrima ao vento
Grito.
Estava por um fio.
Mas não caiu.
Manteve-se ali, adequado, um humano no alto do prédio mais alto do quarteirão da cidade mais populosa do país do cinza mais cinza dos cinzas
Obediente
Garantindo todo o minucioso padrão definido por não se sabe quem.
Obedeceu, ficou, envelheceu.

Na verdade, não.
Espera.

Chegou uma carta
Por debaixo da porta, pelo carteiro, na caixa de Correio.
Veio.

Chegou uma carta endereçada a um humano
Um plano
Ordem, pedido, para que tirasse urgentemente
Qualquer vestígio de folha, flor, fruto, semente
Da frente
do padrão do alto do prédio mais alto do quarteirão da cidade mais populosa do país do cinza mais cinza dos cinzas
Uma carta-bomba
Sem nome
Sem planta
Sem qualquer vestígio de folha, flor, fruto, semente
Sem gente
Uma carta feita de papel-árvore sobre o qual se rabiscavam códigos com lápis-árvore
Demandando urgentemente o fim daquele abuso de natureza
Porque estava a humanidade por um fio
O risco de balançar ou cair o padrão...
Não pode, não.
Não permita, a qualquer custo que seja,
Que vaze da sua janela um vaso de natureza
O padrão não saberá lidar com a beleza
E tudo estará por um fio...

*

Chegou um humano,
Descendo as escadas, carregando uma bicicleta, acionando o freio.
Veio

Chegou um humano endereçado a uma carta
Um levante
Resposta, pedido, para que se repensasse urgentemente
Essa falta assustadora de folha, flor, fruto, semente
E nome
E planta
E gente
Essa falta de endereço e humanidade.
Um humano feito de carne-árvore, pele-árvore, pensamento-árvore
Demandando urgentemente o fim daquele abuso de humanidade
Porque estava a natureza por um fio
- não! Parafusada na parede estava! -
Alertando para o risco de não balançar, de não livrar-se do padrão
Prisão do não.
Permita, uma única vez, a qualquer custo que seja,
Que salte da sua carta uma palavra de gentileza.
O padrão saberá render-se à beleza,
E tudo estará de novo, ufa, por um fio...

Na verdade, não.
Espera.

Chegou mesmo uma carta anônima que pedia ao humano que tirasse urgentemente as plantas da janela porque o risco de espatifar o padrão ou a cabeça de alguém que passasse desavisado por debaixo da beleza não podia ser colocado e aquela planta por um fio colocava por um fio o padrão, o risco, o edifício, a cidade, a humanidade e a pessoa sem nome que a escrevera com papel-árvore. A carta balançou ao vento, beijou a planta, sendo de novo árvore. O humano trouxe a natureza pra dentro - parafusada que estava na parede, foi custoso o movimento. Chamou também o Sol pra dentro e aquecido despediu-se do papel-árvore que voltou à sua anônima origem, ao sem nome, sem Sol, sem natureza dentro, pra dizer que não se preocupe, humanidade, o padrão está intacto. A humanidade... bem, essa está ainda por um fio. Menos aqui, com Sol e natureza dentro, e vento, muito vento, muito muito vento, desses de ventar e espalhar semente de pensamento.