quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

aplicativo

Um dia
não vai demorar
nossos telefones celulares
vão se olhar nos olhos
suspirar
e se abraçar durante anos.

Enquanto não criamos este aplicativo, vamos continuar...

silenciosos
desejando secreta e ardentemente que alguém ouça uma única das 19 mil palavras que vomitamos todos os dias só pra que elas saiam de dentro de nós, nos desentupindo.

desconhecidos
depois de trepar com desconhecidos

tristes, sozinhos, exaustos
depois de gargalhar na happy hour da firma toda uma noite

e anônimos
depois de esbarrar nas barbas mais lindas com que já cruzamos na rua na vida; de levantar da cadeira azul pro velhinho sentar; de ensaiar mudar de banco na praça só pra ver o mundo a partir do mesmo ponto que aquela moça vê...


* com aquelas barbas, construiríamos alguma faísca de mundo justo em que pudéssemos acreditar?

* com aquele velhinho, tricotaríamos horas e horas sentados na varanda construída sobre os escombros daquelas torres envidraçadas que apedrejamos e depois derrubamos a marretadas?

* com aquela moça, dançaríamos o resto do nosso tempo no mundo ao som de músicas inéditas criadas pelos nossos celulares a partir do ritmo das gotas do nosso suor tocando a terra?

deixar

parei de reclamar (que reclamar é coisa de gente chata)
    
     vou deixar quieto
deixar os comunicadores mentirem mais que a propaganda
deixar as pessoas escolherem os caminhos errados

     vou deixar a memória virar entulho
deixar o parque virar prédio
deixar as varandas virarem terraços gourmet

     vou deixar as pulgas comerem o gato e o gato comer as pulgas
deixar a porta de trás sem fechadura
deixar o café esfriar no copo americano

     vou deixar os ricos comprarem as vidas dos outros
deixar os carros me atropelarem na faixa da direita - ou na de pedestres
deixar as pessoas desejarem seus desejos de eliminar pobres, pretos, índios, outros

     vou deixar os sistemas operacionais se/me atualizarem de hora em hora
deixar o metrô quebrado levar minhas melhores horas
deixar os pingos escorrerem pelo cabo do guarda-chuva quebrado

     vou deixar você ir.

tribo

uma dança com árvores
e raízes
   galhos
   gritos

ramos entrelaçados
se enrolam em cachos de cabelos
grisalhos
imensos
que alcançam as nuvens

e durante horas e horas e horas o tempo para.

porque a canção do tempo da vida
tá sendo criada de improviso
ali no agora daquele bailar

e os suores dos corpos-troncos
são gotas de orvalho
que fecundam a terra
e as almas

nascem então intermináveis sorrisos em forma de lua.

e logo dormem
boquiabertos
ante a harmonia de ser tribo.

paulista

eu caminho pela cidade
pisando leve

a qualquer momento
posso tropeçar ou pisar
numa memória
nossa.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

velocidade

as luzinhas de Natal da frente da sua casa têm pressa.


não adianta.

a vida leva tempo.

domingo, 8 de dezembro de 2013

Escritos de um domingo de trabalho

a ser
Se eu explodisse
E esse vazio barulhento de dentro
Virasse labareda sem controle

Queimaria
preguiça, mentira, frescura
mesquinhez e bom comportamento

Queimaria
piscina de mansão, fazenda de escravidão
culpados, covardes, cansados

Queimaria limites
E, cheia dos cacos que sobrassem,
a realidade seria, de novo, uma só
indescritível. a ser.


***

Tatuagem
Ele tinha uma cicatriz
se confundia com a costela
era porta de entrada do pulmão
como se o ar pudesse entrar nele por ela

Ele tinha uma cicatriz
e dela não dava pra ver começo nem fim
Dali do meio do tronco
ramificava nele todo - musgo

Ele tinha uma cicatriz
em vez de roupa, comida, sonho, dentes
Um desenho quase bonito-de-feio
Tatuagem de misérias

Ele tinha uma cicatriz
que se mostrava mais que os olhos,
mais que a roupa rasgado e o descalço dos pés,
mais que sua humanidade até.

Ele era a cicatriz
movendo-se entre carros sem ninguém dentro.

***

Queria escrever uma palavra
violente e acolhedora
como o calor

Queria arrancar seus olhos, os pulmões e as pernas
pra você entender direito o que é ser livre

Queria filmar dentro de você
- uma câmera documental -
pra achar onde é o espaço do outro

Queria transplantar as lágrimas todas
trocar as de uns com as de outros
pra só sobrarem as banais.

Porque os motivos de existência das lágrimas justas
virariam chuva

ácida

derretendo-nos todos
a partir da geolocalização
das nossas injustiças acumuladas

Eu queria escrever uma palavra de revolta
mas esses dias só tem saído água da ponta da caneta azul.