sábado, 7 de junho de 2014

Dilúvio

E um dia chegou o dilúvio.
Surpreendeu quem é de ser pego de surpresa.
Quem é de prestar atenção, já esperava - em silêncio respeitoso.

Durante 168 horas,
o céu de fez água
e a água cobriu, docemente, tudo.

Em botes,
religiosos de todas as linhas
criavam suas Arcas sem Noés
e naufragavam
à primeira onda

Caminhando sobre as águas,
profetas da Praça da Sé
sentiam finalmente o divino
e, sem ter com quem compartilhar,
ficavam inacreditavelmente mudos
e mudos choravam seco
em vez de gritar.

Boiando de bruços com seus headsets,
atendentes da Claro
explicavam o inexplicável
- estamos com problema de conectividade nacional" -
para clientes ilhados
antes de se afogarem,
cada qual do seu lado,
da linha.

Em pontos estratégicos,
Muleques de rua jogavam água pra cima
Sapateavam,
E riam tanto, já debaixo d'água,
que as bolhas de ar que se formavam
faziam crer que aquelas poças gigantes
ferviam
de calor humano.

Equilibrando-se sobre os tetos das casas, nas pontas-de-telhado-icebergs,
palhaços enrolados em toalhas floridas
envoltos em bóias de pato,
declamavam "garoa do meu São Paulo"
e escreviam no ar
"sorria, você está num mundo novo".
Depois, soltavam água pela boca
ao mesmo tempo em que mijavam mirando o céu
num duplo chafariz
que formava arco-íris
e potes de ouro
pra ninguém ver.

Na Prefeitura transformada em aquário
os quadros com as caras de governantes escrotos
boiavam como peixes mortos
de indigestão
de tanto comer o que é de todos
No jardim - lindo! - da cobertura do edifício,
o peixe-Prestes-Maia, balofo,
via com olhos arregalados de estupefação
manifestantes-rios tomarem de volta suas ruas-leitos
em festa molhada.

No meio das ondas festivas
dava pra ver tamanduás de todas as cores
batucando marchinhas de Carnaval
ao lado de foliões-gente recém afogados
e contentes
por poder ver o justo antes do nada.

Quando a maré finalmente baixou,
não tinha mais nada.


"A água é o sangue da terra",
ouvia-se, ainda, esse pedaço do canto dos afogados.
E no ar lia-se, piscante, a mensagem dos palhaços:
"sorria, você está num mundo novo"

Nenhum comentário: