sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

do silêncio e da solidão de ser
o que se é

- a cada novo eu que aparece por segundo -

o que se é
naquele ato

o que se é
e só


***

o desequilíbrio
estabanado
de descobrir-se

como um novo-palhaço
que experimenta, primeiras vezes, o sapato imenso
eu me experimento eu
imensa

chega a ter graça
o desajuste

como um chapéu colorido de praia em dia de chuva no meio da praça

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

confiar

CONFIAR
FIAR COM
COSTURAR
TECER
HISTÓRIAS, DESEJOS, SONHOS, MUNDOS
PRA LÁ DO EU
DO MEU E DO SEU
LÁ, ALI
NO COMUM

DESLOCAR
DESAPROPRIAR
-SE
NA DIREÇÃO DO FORA
E EXPOR PRA COMPARTILHAR

ENTREGAR-SE, SUAVE, ÀS AGULHAS DO OUTRO
EM RISCO
A CRER QUE CADA FIO ENTRELAÇADO
SERÁ MANIPULADO COM A
LEALDADE
E A DOÇURA
DE QUEM AGE NUM SER INTEIRO,
TECIDO INTEIRO
NO ARTESANATO-ATO DE CONFIAR.

fora da disputa

pessoa não são terra
território,
latifúndio
em disputa

pessoas são mundos
em contato
ato
comum

CONTO-CANTO-ATO

O BRANCO
ÁGUA
UM PEDAÇO DE BOLO
UM PEDAÇO DE CÉU
E A OPORTUNIDADE

É OPORTUNO
- E DOÍDO -
VER SEM O VÉU

CÉREBRO DORMENTE
PEITO EM FLOR

VER SEM O VÉU
É ABRAÇAR A ESCUTA
          DO DENTRO

VOCÊ SEMPRE JÁ SABE
NÃO HÁ MAIS O QUE SABER
          SÓ FALTA O LEMBRAR
                                      E O ATO

TODO O TEMPO, O ATO

CONTAR DE NOVO
O CONTO QUE TE CONTA
SÓ QUE COM PEDAÇOS DE NUVEM
PASSANDO NUM ASSALTO

CONTAR DE NOVO E DE NOVO
O CONTO QUE TE CONTA
SÓ QUE COM BRECHAS NOVAS
NO MOVIMENTO DE PASSAR

CONTAR DE NOVO E DE NOVO E DE NOVO
O CONTO QUE TE CONTA
SÓ QUE COM FOLHAS FILHOTES
A BROTAR ARREPIOS

CONTAR DE NOVO E DE NOVO E DE NOVO E DE NOVO
O CONTO QUE NOS CONTA
SÓ QUE COM MUNDOS NOVOS
A CANTAR COMUNS

O CANTO
É O ATO
DO PÁSSARO.

PASSAR PELOS NÓS, NOS CANTOS, EM CONTATO

silêncio de ouvir geladeira

Enquanto você ronca
e os pernilongos reinam
eu cresço.

no verso ruim que eu deixei vir
na lágrima última que eu prendi e virou nuvem
eu alcanço minha brecha de céu
meu pouco de universo

nem mais uma lágrima
nem mais uma palavra
que não estejam para fundar.

silêncio de ouvir geladeira
e alegria de pássaro madrugueiro

nem mais um embrulho de estômago
nem mais um passo comum
que não estejam para clarear

silêncio de ouvir pensamento
e inaugurar transparências no tempo

*

Enquanto você mente
e os planos minguam
eu semeio

nas histórias futuras que imagino
nas viagens dentro e fora que pressinto
eu alcanço meus desejos descartados
meus pedais empoeirados

nem mais um corpo queimando por dentro
nem mais um vendaval no peito
que não estejam para delirar prazer

silêncio de escutar o eu
e, duvidando dele, caminhar para os outros, no plural.

nem mais uma pausa no sono
nem mais um frear das andanças
que não estejam para desenhar trilha

silêncio de escutar o caminho,
e, duvidando dele, arriscar outros, no plural.

silêncio de ser o risco, risco de ser o ato, ato de ser o silêncio, que precede o salto.

sábado, 25 de outubro de 2014

produção de busão

[são paulo - americana]

que se grite


não há água
que faça brotar silêncio
sol tem, até
e adubo

mas tem também coisa demais
é coisa tanta, mas tanta,
que dá a volta na gente
e o ruído
é nuvem cinza-clara
véu de fumaça
que garante
o nada.

Desde que desaprendemos a silenciar...

não há água
que faça brotar grito que se ouça
grito tem, até
e necessidade de grito

mas tem também coisa demais
é coisa tanta, mas tanta,
em forma de nuvem, ruído, fumaça, véu e mentira e tal
que...
que o quê?
...
que a gente se perde, se esquece, se emudece.

eu não sei gritar que se ouça
porque já não sei silenciar que se grite.

***

com sangue

a moça caolha gritou:
"é esse!"
a outra moça caolha respondeu:
"é aquele!!!"
e ganhou por 2 exclamações.

Nenhuma olhou pra si.
E aquele, como esse,
ignorou-as ambas, solenemente.

O sangue que saiu da briga caolha
escorreu seção adentro
entrou na urna eletrônica
e a explodiu.

foram anos de luto.

séculos depois,
uma criança olhando fósseis
perguntou:
_ "como é que se faz poder?"
_ "com sangue, filho".

***

[in] DISTINÇÃO

todos os caminhos levam
a mim

todos os caminhos levam
a você

todos os caminhos levam
a nós

e limites.

MAS

cada caminho, um nós
cada nós, outros limites,
cada limite, nova ponte única para o desconhecido singular.

e, então, em cada inédito
pedaços, restos
de cada caminho.

se a cada caminho, um inédito específico,
pra qual inédito caminho?

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

O eu, a moral, a salvação: tudo profano

Como se chega a ser o que se é > Os paradoxos da autoconsciência > Moral

[Do Larrosa, pra me salvar de mim numa praça linda numa manhã de domingo...]

O homem se faz ao se desfazer: não há mais do que risco, o desconhecido que volta a começar. O homem se diz ao se desdizer: no gesto de apagar o que acaba de ser dito, para que a página continue em branco. Frente à autoconsciência como repouso, como verdade, como instalação definitiva na certeza de si, prende a atenção ao que inquieta, recorda que a verdade costuma ser uma arma dos poderosos e pensa que a certeza impede a transformação. Perde-te na biblioteca. Exercita-te no escutar. Aprende a ler e a escrever de novo. Conte-te a ti mesmo a tua própria história. E queima-a logo que a tenhas escrito. Não sejas nunca de tal forma que não possas ser também de outra maneira. Recorda-te de teu futuro e caminha até a tua infância. E não perguntes quem és àquele que sabe a resposta, nem mesmo a essa parte de ti mesmo que sabe a resposta, porque a resposta poderia matar a intensidade da pergunta e o que se agita nessa intensidade. Sê tu mesmo a pergunta.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

em ruína

pedaço de pedaço de pedaço de caco
mosaico torto

um pedaço de mulher grávida
expulsa de casa
pelo dinheiro
em forma de gás

um pedaço de cérebro humano
expulso do mundo
pelo dinheiro
em forma de bala de metal

um pedaço de mim
expulso de mim
pelo dinheiro
em forma de mundo

um pedaço de ferida solitária
que acorda e dorme
sem cicatriz

e umas migalhas de humanidade,
aqui e ali

um pedaço de silêncio sem fim.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

enquanto

montanha russa sem freio
mais looping que calmaria
a trava de segurança quebrou
e o moço que cuida do liga/desliga
foi ali fumar um cigarro.

enquanto
a gente procura um horizonte pra fixar os olhos - e as esperanças
o carrinho desgovernado das urgências nos atropela.

enquanto a gente colocar o foco no carrinho das urgências,
um pôr-do-sol assombroso nos arranca o estômago e laça nossos olhos - e as esperanças e aquele desejo profundo de amanhãs.

enquanto a gente escolhe o que ser, tá sendo.
e enquanto é, tá escolhendo o que ser.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

escritos de ônibus SP-RJ [2 *]

Movimento

Eu
corpo em trânsito.
Foram tantos

os meus corpos em trânsito!

Tem uma guerra
aqui dentro
Ela é do tamanho
do existir;

E é também minúscula
quando difusa na paisagem
aqui na janela
que mistura o agora com o agora há pouco e o daqui a pouco
me oferecendo
 
                      o movimento


***

à minha amiga que voou

vejo tuas asas
desenhadas nas nuvens leves
- e o céu está tão azul!

nós somos os vôos que fazemos
e os que não fazemos
- os vôos e os pousos

então, pouse suave, ave!
e deixe as asas preparadas, hein!
que o vento - ainda - te sopra...


***

Ousadia


Ousadia, meu filho, é abrir casa de umbanda em Aparecida


***

[do livro Voces Mapuches]

Dormitar


es hora
en que el fuego comienza a dormitar
abuela
Y el camino del cielo
me trae tu voz
desde las sombras

es hora de dormir,
me dices,
mañana otros pasos andaremos
porque otras son
las palabras en el día


*

En este suelo habitan las estrellas


En este suelo habitan las estrellas
En este cielo canta el agua de la imaginacion

Mas allá de las nubes que surgan
de estas aguas y estos suelos
nos sueñan los Antepasados
Su Espíritu - dicen - es la Lina Llena
El Silencio: su corazón que bate

*

{trecho}

Salí a perderme en los
bosques de la imaginación
(en eso ando aún)

*

{trecho}

cada una es diferente a la otra
cada planta tiene su propio espíritu


***

Da falta

A doçura que mora na tua mão
é do tamanho do espaço imenso
que sobra
ao meu redor
quando você não está.

O espaço-dentro. Quanto!

Sentir esses espaços é sentir que eles existem.
Sentir que eles existem é condição para sentir a alegria de tê-los repletos.
de nós.
e linhas.
e tal.


***

de volta à vila

os ipês da minha vila
dão flores amarelas
e cachos de tênis velhos
brotando dos cadarços encardidos

do lado de fora da Lotérica             fechada
as pessoas                  esperam
o início do horário comercial
pra comerciar a chance
da sorte
de uma vida mais tranquila

Eu
também espero
a sorte
de uma vida mais tranquila
de ipês amarelos.
e corro.

Você
também espera
a chance
da sorte
de uma vida mais tranquila.
e corre.

No meio das avenidas
nos encontramos
esfacelados das corridas
de algum jeito nos seguramos
mãos dadas, meio tremidas.
e rimos.

(eu caminho na minha vila cantando poesias dentro da cabeça pra os passarinhos ouvirem. aí, numa esquina, encontro uma criança fazendo qualquer coisa. e ela é poesia. eu guardo silêncio e próximo passo)

*

Ei, São Paulo
espelho do meu caos.
a belezura dos detalhes
com a crueldade do panorama.

e sol!

o sol entra pela porta do metrô
pelo vidro não-arrebentado da janela da sala
pelo peito
e narinas

e vira o cansaço do avesso
e vida!
terminal.


* o 2 do título refere-se a este 1 aqui ó:
http://pedacinhosdemundo.blogspot.com.br/2013_11_01_archive.html


sábado, 6 de setembro de 2014

carne moída

a carne moída
a pessoa afastada da vida

a alma ferida
a pessoa desperdiçada na corrida

do que corremos?
para que corremos?

o que paralisamos dentro pra correr assim?

o que congelamos no entre porque não há tempo de regular o foco e desembaçar os sonhos comuns?
o que abandonamos das histórias que poderiam ser feitas em nome do que se tem que fazer?

***

essa coisa que se passa aqui dentro não sou eu
mas me molda
essa coisa que se passa aqui dentro é acúmulo
são vozes, medos, pressões, padrões
tudo junto-misturado num xurume
num não-saber, não-querer ser mais
e acabar sendo, todo mundo, só isso.
injustos, carentes, egoístas, possessivos, cansados.
carentes.
com um puta medo de perder a gente mesmo
quando já perdemos os vínculos comuns.
com um puta medo de nos perder dos outros
quando já nos perdemos de nós.
medrosos.
carentes.
e cada carinho é tudo e nada.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

esqueci de te contar

enquanto eu olhava pro vazio
pro só e pro entre
e rabiscava a tela do computador
com sal de lágrima

aconteciam coisas aqui

esqueci de te contar
deve ter sido a correria, o calor, o frio, o trabalho, o telefone que quebrou
deve ter sido a falta
de foco, de tempo, ou a falta de amor, de compromisso, de vergonha na cara, de...

ou deve ter sido o excesso
de trabalho, de carro, de barulho, de louça suja, de gente, de desejo, de planos bagunçados, de expectativas, de opinião, de trabalho, de trabalho, de trabalho...

enfim, esqueci, esqueci

mas, olha, aconteciam mesmo coisas aqui

e eram lindas

acontecia gente fazendo malabarismo com a vida, no farol e na varanda, como se ela fosse boa no fim das contas. aconteciam mulheres autônomas e incríveis educando filhos educadores. aconteciam amigas curando com florais, com olhares, com sopa de legumes, com sambas no bexiga. aconteciam mergulhos no fim do mundo pra encontrar o encanto das histórias que vale a pena escutar até dar tontura. acontecia o amor desenhado com os dedos no ar, no corpo, no espelho do banheiro, no vidro do busão, enquanto plantas improváveis floresciam nos quintais ou dentro das jarras de água. acontecia até tartarugas nadando dentro do metrô. acontecia cheiro de vick e lembranças de vó. aconteciam mulheres de 100 anos aconselhando loucuras. aconteciam parcerias de vida inteira transformadas e reafirmadas em olhares e silêncios tagarelas no meio da multidão. aconteciam dias de sol em que o próprio sol pedalava pela cidade, sorridente, entre barbas. aconteciam escaladas em amoreiras gigantes em que era possível olhar o mundo do alto dos 7 anos e entender tudo como se fosse simples.

além da dor, do ladinho dela, aconteciam muitas coisas por aqui.
e elas eram assim absurdamente, doidamente lindas e felizes.
desculpa, esqueci de te contar.

domingo, 31 de agosto de 2014

carnaval de histórias

Carnaval de histórias
pedaços de memórias coloridas
voam de fora para dentro - e invadem os olhos
serpentinas de saberes
se desenrolam da pele - e invadem os outros

Tudo é festa!
e, ao mesmo tempo, lágrima.

Dentro no fora,
eu no outro.
Esboço
de vida compartilhada
Esforço
de autonomia esperançada.

O movimento de dentro
quando encontra o do entre
é tempestade, maremoto, vendaval,
é, do seu modo, cotidiano carnaval.

habitar

Exposta
acariciada pelo vento
a ferida pulsa.

Dela saem suspiros
sonhos, memória
arrepios

e uma vontade funda de fugir.

*

Fora da gente
os caminhos são mais claros
Mas fora da gente
não são os nossos pés que dão os passos

*

Habitar-se
não é ação de hábito
é esforço

é ocupar, em luta, o terreno do eu
[que nem existe]

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

pedaço de presente

porque um pedaço é expectativa
outro, lembrança
outro presente.

porque tem tanta vida
que sobra - salta e rodopia -
sobre essa

porque tem tanto momento
que imagina - sonha e delira -
sobre esse

porque tudo o que não vivemos
daria umas 7 vidas novas
e bilhões, trilhões de histórias

ah! mas o presente, o presente...
o presente é a gente. e só.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

lua de dentro

lua cheia
meia
se esconde atrás das poucas nuvens
nubla

eu sem ar
meia
me escondo de mim
pra ver se não te vejo
tanto

sou lua cheia - meia

pedaços de lua
pedaços de luz
reflexos
marcad'água, pesada, de lua
no ceú imenso
denso
de ser - e manter
aceso um pouco de luz
ao escurecer
até.

***

minha dor
são palavras

tijolos de palavras
facas de palavras
fotografias de palavras
lagos de palavras
rio de lava de palavras

tanto silêncio.

***

não fosse o tão imenso medo, o pavor mesmo, que temos de sermos o que somos [pensamos, sonhamos, desejamos, não queremos]; e, mais ainda, que temos de que os outros conheçam o que somos [pensamos, sonhamos, desejamos, não queremos], talvez houvesse alguma brecha pra algum tipo de amor em que se pudesse crer. assim como é [no medo, no nada, no não ser, no não me/te deixo conhecer] só vejo pagadas na areia fina. e o vento bate logo, louco.

***

não fosse eu, a vida seria mais simples.

***

tem um lugar dentro do vazio
do só
que tem a leveza e o peso da brisa
e ainda canta.

terça-feira, 22 de julho de 2014

2012 – um ano em mim


2012 – um ano em mim

Não é à toa que eu começo triste essa escrita.

Se a tristeza é o que move a escrever, é também o que transforma mais profundamente.

O aprender é dor porque é, na verdade, desaprender. Foi assim que a Valéria me ensinou. É arrancar de algum lugar bem profundo na gente, à força, os infinitos convites e intimações a sermos o que não somos.

2012 foi o ano em que perdi algumas muletas e derrubei outras. E a sensação de ficar sem muletas é igualmente a de voar e a de cair – a ausência de limite e o limite do eu-só.


 ***
  

O parceiro

Filho de índio-português com jornalista. Cabeludo e alto, imenso.

Meu parceiro me ensinou a ser mais leve e a defender, profissionalmente e seriamente, a leveza dele. E, consequência, garantir a minha.

Nunca, nem nos dias de chuva, nem nos dias de falta de grana, nem nos dias de solidão, nem nos de jogo do Curíntia, nem na despedida, nós estivemos tristes. Embora minutos antes, minutos depois, agora, sim.

Nunca, nem nos dias de insinuação do melhor garçom do mundo de que nascemos um pro outro, nem nos dias de carência, nós fomos mais que parceiros. E isso era muito.

Daí um dia, o parceiro foi lá. Ele decidiu e foi. E aquilo foi tão pesado em mim e tão leve nele que eu entendi nossas distâncias. Ele não era espelho. Era outra coisa.

Um dia ele decidiu voltar e voltou. E decidiu ir embora de novo e foi. E voltar de novo, e voltou. Mas nunca voltou. Aliás, voltou E não voltou.

Porque aquele tempo foi aquele tempo.

Porque ele era muito mais do-mundo do que eu jamais saberei ser.

E foi isso que ele me ajudou a arrancar de mim: a pretensão de ser leve, livre, do-mundo de um jeito que eu não sou. E a própria preocupação com isso. Arrancar, lá bem do fundo, a incapacidade de conceber que decidir ir e ir pode ser simples.

*

O apêndice

Trabalhar pra esquecer. A própria receita da tragédia. Não há nada que possa ser realizado com beleza e verdade a partir da fuga, do esquecimento, do afogar-se esperando que a água liberte do ar.

Intensamente. Mentirosamente. Nem só as verdades são intensas. Aliás, as mentiras tem tal capacidade de serem vividas intensamente que suspeito que superem as verdades nesse ponto.

O intenso não é, por outro lado, sem fim. E o fim da intensidade pode ser que seja o vazio. E foi o que sobrou do lado direito inferior da minha cavidade abdominal.

Eu queria dizer pra médica que ela precisa ter mais cuidado. Mas primeiro teria que dizer isso pra mim.

Eu queria dizer pro João que as aulas dele foram a única coisa que teve sentido de verdade naqueles dias. E os olhos dele: cheios de futuro.

Eu queria dizer pra minha mãe que ela estava mais pálida que eu e que mesmo assim seria bonito ela sorrindo no vídeo-besta de despedida que eu gravei antes da cirurgia.

Eu queria dizer pra enfermeira que me tratou mal (antes de eu chorar) e bem (depois de eu chorar) que ela me fez entender muitas coisas. E queria saber se ela chora ou tem vergonha de chorar.

Eu queria dizer pra enfermeira que me chamava de Garota que ela é a vida mais forte que eu vivi ali e que quando ela tirou o “breno-dreno” de mim, ela me ajudou a terminar de arrancar umas tantas mentiras e deixar espaço lá dentro pra vida. A principal mentira que a gente arrancou juntas – eu sofrendo, ela sorrindo – foi a de que a autossuficiência é possível. A autonomia é possível. A autossuficiência é máscara.

*

A menina que roubou o sol, mas esqueceu de levar

Ela ainda fez a boniteza de não ir num domingo.

Mas, depois, vieram tantos domingos...

Ela fez despedidas bizarras que me mostraram que ela, também, não era espelho. Era outra coisa.

Eu não consigo lembrar do nosso último abraço.

Dele, eu fui pro frio e ela também. E o sol sumiu, não foi com ninguém.

A gente ficou sem ter pra quem perguntar se o pimentão tava cortado muito grande, muito pequeno ou tava óoooootimo assim.

Eu chorando aqui, sem nem cachaça pra comemorar que o preço do ônibus abaixou por pressão popular. Ela chorando lá, com vinho de 4 euros pra comemorar o frio do não-compartilhamento da vida. E a gente nem pode misturar as lágrimas pra, sei lá, ver com que gosto fica. Ver se mistura a minha crença com a descrença dela.

Naquele dia lá bem-antes, era só uma noite-besta de samba na vila dos ricos descolados que falam de Cuba como se falassem da casa na praia, com aquela falsa indignação que é pior que a falta de indignação completa ou com aquela falsa esperança no mundo que é pior do que a desesperança completa.

Naquela noite, chorando rios e xingando todo mundo, ela me arrancou lá de dentro a minha descrença e ficou com toda ela. E agora eu tenho fé. E ela continua sendo a pessoa, entre as que eu amo, mais verdadeiramente cética.


A memória no muro

Eu perdi a conta de quantas vezes e de quantas cores imaginárias eu pintei aquele muro com pincel molhado na água dentro do pote de margarina.

Os muros são memória. Mas só enquanto são. Hoje, mesmo antes de eles caírem, eles já são outros, já não estão recheados das lembranças que eu vivi nem das que eu inventei.

Tia Marina, no seu atravessar o muro da vida, me arrancou a memória do muro. Atrás dela, as memórias dos muros que virão.


[Lagartixa

Quando um ser humano que faz parte das nossas memórias, ou mais até, que guarda em sua existência mesma pedaços preciosos de memória... quando esse alguém "acaba", isso cria vontade de silêncio, papel e caneta. E faz desejar uma capacidade de guardar tudotudotudo numa memória infinita. Que não temos. E a gente perde. Perde a pessoa, perda uma parte da vida, que vai com ela. E ganha uma sensibilidade imensa para a vida que está e para a memória que estamos construindo todo dia.

Dizendo tchau com água-de-olhos e silêncio, escrevi isso, tia. Ó:

"A memória mora nos espaços, mas não prescinde das pessoas porque precisa da troca para manter-se viva.

A memória dá vida às pessoas que dão vida à memória que dá vida.

A memória mora na casa-de-vó, na cristaleira, nas palavras "alegria de viver" que nós trocamos, na louça lavada perfeita secando no sol - primeiro os copos! - mas vive mesmo no cheiro amargo-dooooce de café, no som doooce-amargo da voz que a gente sente/escuta mesmo que já não haja.
 
A memória dorme. E acorda pra viver diferente de novo. E de novo. E se despedaça. E de cada pedaço nascem memórias novas. Igual lagartixa."

Um pouquinho da memória que compartilhamos, o que coube, vive e se mexe aqui dentro de mim, tia. E, aliás, vai rodar comigo por aí, porque, você sabe e dizia: eu tenho rodinhas nos pés.


Da varanda

Daqui a um pouco de tempo, alguém vai olhar da varanda, sentado, e verá um muro. Talvez um portão.
Se houver varanda. E se houver onde sentar na varanda.

Daqui a um pouco mais de tempo, alguém vai olhar da sacada do apartamento em cima da antiga varanda, sentado, e verá, de cima pra baixo, a árvore ali da frente, a copa larga, velha, abrigo.
Se houver onde sentar na sacada. E se houver a árvore.

Daqui a um pouco mais de tempo, alguém, indo fechar a porta e a cortina da sacada do apartamento em cima da antiga varanda, porque em frente haverá outro prédio e não fica bem uma pessoa ver dentro do apartamento da outra, vai olhar de trás da porta, pelo meio da cortina, da sacada do apartamento em cima da antiga varanda, e não verá nada.

Os olhos que moraram naquela antiga varanda, sentados, namorando a rua, viram muito, viram tudo, viram a vida. É de uma responsabilidade inassumível sentar e olhar daquela varanda. E ver o jardim que criança não pode mexer, o pote de margarina de dar água pra passarinho, o balanço improvisado e o pote de margarina de pintar o muro de cor de água, de cor de muro. E ver as rosas. (Haverá rosas? Haverá quem veja as rosas?) E ver os vizinhos mais irmãos que os irmãos e as casas descascando as tintas das paredes, as folhas e flores e os barulhos dos carros. As folhas caindo pra alguém não varrer hoje que o sol está forte e, afinal, já lavaram com água o quintal de cimento. E ver o sol forte alegrando os passarinhos. E ver o sol se pôr, a vida começar e terminar.

Os olhos que moraram naquela antiga varanda, sentados, namoraram a vida. E viram, cheiraram, escutaram, perceberam, silenciaram que a vida... isso tudo que se viu daquela varanda e que daqui a um pouco de tempo não se verá... é coisa tão pequena e tão grande. Tão muito e tão pouco. É coisa de se olhar por uma vida toda pra entender.]

*

O companheiro

Ele era-é eu. Era-é São Paulo. Era-é o teatro, a comunicação, o sexo, o centro-velho, a cerveja, as vitaminas, as caminhadas, a bicicleta, o vento.

E, bem juntinho com o vento, planejei a libertação. E a libertação aconteceu. Foi tanto! Pra ele, que era-é eu, e pra mim. Aconteceu e é só a gente olhar de cima, do elevador panorâmico do depois-de-um-tempo.

A libertação teve sol, Galeano, geleiras, nevezinhas, cordilheiras, caronas. Teve filhotes de ano-novo e depois não teve mais. E teve até falta de amor, mentira e choro com água de coco no meio da rua.

Aí ele voltou. E foi aí que ele foi. E, nessa ida, me arrancou o gato e o chão – ambos com o meu pleno consentimento. O chão. Aquela coisa ali nos fundamentos da gente que, ao mesmo tempo, nos dá a confiança de saltar pro vôo e o conforto de nem querer saltar. Sem o chão, me sobrou tudo. Tudo o que não é o chão. E que é, igualmente, voar e cair.


Eu agradeço.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

não deu tempo de fazer o arroz

Num galpão, chão sujo.

_ Não deu tempo de fazer o arroz!
_ A gente ajuda!
_ Cês ajuda?

E, de repente, a gente é.

Lugar de comer, de cantar,
e de dividir a aguda falta completa de sentido
tão cheia, ao mesmo tempo, dessas coisas
                                                       tipo alface,
                                                       tipo amor,
                                                       tipo doce de leite orgânico,
                                                       tipo janta,
                                                       tipo gente,
                                                       tipo vida.  

casa

minha casa
é meu corpo
expandido
sem controle

uma flor que murcha - um fio de cabelo que embranquece
uma louça mal-lavada - uma alma imunda
roupas jogadas - projetos no armário
lençóis amassados - amores entrançados

*

como será que fica um corpo
quando a casa vai pro chão pra dar lugar à Copa
                                                               ou a mais um terraço gourmet do mais novo empreendimento?  

domingo, 8 de junho de 2014

um presente

da flor
fez-se luz
presente

da luz
fez-se memória
quente

pra nunca mais esquecer
pra não mais perder de vista
que amor
é vela
movimento da chama com o vento
calor e boniteza tomando as ruas de dentro da gente

é um ronronar morno
porteiro do sofrimento
que só deixa passar pipoca e nutella

e um dependurar-se
pra se atirar
em võo livre
sem rede, sem drama

o resto
é loucura.
e é menos.

passa

passa praça atrás de praça
e gente - tanta!
dentro e fora da praça
dentro e fora da gente

passa hora atrás de hora
e as (dis)posições - tantas!
radicalizam, depois suavizam
buscam alento, depois movimento

passa vida atrás de vida
e os desejos - tantos!
envelhecem e esperançam
perdem a paciência,
ganham pernas,
desenham caminhos,
borram na hora de pintar.


sábado, 7 de junho de 2014

Dilúvio

E um dia chegou o dilúvio.
Surpreendeu quem é de ser pego de surpresa.
Quem é de prestar atenção, já esperava - em silêncio respeitoso.

Durante 168 horas,
o céu de fez água
e a água cobriu, docemente, tudo.

Em botes,
religiosos de todas as linhas
criavam suas Arcas sem Noés
e naufragavam
à primeira onda

Caminhando sobre as águas,
profetas da Praça da Sé
sentiam finalmente o divino
e, sem ter com quem compartilhar,
ficavam inacreditavelmente mudos
e mudos choravam seco
em vez de gritar.

Boiando de bruços com seus headsets,
atendentes da Claro
explicavam o inexplicável
- estamos com problema de conectividade nacional" -
para clientes ilhados
antes de se afogarem,
cada qual do seu lado,
da linha.

Em pontos estratégicos,
Muleques de rua jogavam água pra cima
Sapateavam,
E riam tanto, já debaixo d'água,
que as bolhas de ar que se formavam
faziam crer que aquelas poças gigantes
ferviam
de calor humano.

Equilibrando-se sobre os tetos das casas, nas pontas-de-telhado-icebergs,
palhaços enrolados em toalhas floridas
envoltos em bóias de pato,
declamavam "garoa do meu São Paulo"
e escreviam no ar
"sorria, você está num mundo novo".
Depois, soltavam água pela boca
ao mesmo tempo em que mijavam mirando o céu
num duplo chafariz
que formava arco-íris
e potes de ouro
pra ninguém ver.

Na Prefeitura transformada em aquário
os quadros com as caras de governantes escrotos
boiavam como peixes mortos
de indigestão
de tanto comer o que é de todos
No jardim - lindo! - da cobertura do edifício,
o peixe-Prestes-Maia, balofo,
via com olhos arregalados de estupefação
manifestantes-rios tomarem de volta suas ruas-leitos
em festa molhada.

No meio das ondas festivas
dava pra ver tamanduás de todas as cores
batucando marchinhas de Carnaval
ao lado de foliões-gente recém afogados
e contentes
por poder ver o justo antes do nada.

Quando a maré finalmente baixou,
não tinha mais nada.


"A água é o sangue da terra",
ouvia-se, ainda, esse pedaço do canto dos afogados.
E no ar lia-se, piscante, a mensagem dos palhaços:
"sorria, você está num mundo novo"

sábado, 24 de maio de 2014

Na rodoviária

Na plataforma,
Motores ligam, roncam, desligam
Parados, em direção a infinitos destinos.

Na TV,
machistas ensinam mulheres sobre:
shortinho estampado, paetê, sobremesa e traição.

Na Ucrânia,
5 mortos seguram armas numa foto posada
Enquanto na Tailândia,
golpe militar ganha apelido de crise.

No Itaquerão,
1 morto.
Oficial.
Sua memória é celebrada com coro de cornetas verde-amarelas
Enquanto ricos se sentam sobre escombros de casas
Para ver milionários brigando - mas não muito -
Pela posse.
Da bola.

Na poltrona ao lado,
Mulheres mergulham de cabeça nos seus celulares
E enviam mensagens de amor-próprio para si mesmas.

No colo do tio,
o bebê baba de desprezo
pelos problemas que inventamos e adubamos
E em seu sono profundo
escolhe o sonho de nascer outra vez,
num mundo menos besta.

No peito do vendedor de água,
#vaitercopa
#Brasilcampeão
E o formoso céu, além de límpido,
do alto do lábaro estrelado,
ri da cara sem-dente do homem.

No reino da vida longa,
uma velhinha boiadeira
mistura, ousada, estampas de onça pelo corpo.
Seu rosto - europeíssimo, olhos azuis -
é também ele "de onça",
onça sardenta, guardião da memória
que transporta enrolada
no seu cachecol vermelho,
bordado a dedo.

No vidro sujo,
o reflexo embaçado,
é meu retrato mais verdadeiro possível.
Hoje.

Na mancha velha,
A memória faz lar,
doce, nojento,
E exibe, suja e manca,
novos e velhos caminhos,
encontros recentes e antigos,
acenos de saudade e alívio
uma lágrima única
com gosto de chuva.
ácida.

Na chuva,
As nuvens descem em visita
Logo, se arrependem e escorrem pros bueiros
Escondendo-se de tanto nada

Na espera,
Os corpos sentam em si.
E esquecem o que esperam realmente
Enquanto fingem esperar o tempo...
o ônibus...
o outro...

Alerta

Os caminhos são tantos
e nenhum
E eu não sei por onde.
Mas meu corpo, muitas vezes,
me sussura, de canto
"por aí, não"
aos prantos.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Sobrevivências, tecidos e imprevisibilidades

Terapia-amiga de sobrevivência

Homeopaticamente
Eu vejo amigos
e me apresso:
é preciso desembuchar, desentalar, todo o engolido sem sentido.

Antes que chegue a hora
de engolir absurdo velhos - travestidos de novos
Antes que chegue a hora
de sacolejar no trem - cochilando e batendo a testa no vidro
Antes que chega a hora
de cumprir compromissos - de trabalho, de estudos, de tudo, de todos

É preciso aproveitar
o período da consulta
a terapia amiga de emergência
a falação-sobrevivência

Não há tempo pra silêncio
solidão compartilhada,
um belo tanto de fazer-nada,
ou coisa que o valha.

É preciso,
já com o soca vazio, agora,
correr
correr
correr
pra encher-me com os vazios novos
- os velhos absurdos travestidos de novos -
que esperam ansiosos
porta afora.


Imprevisíveis

O papel em branco me ri
_ Então você resolve o mundo
- seus assombros e seus escombros -
com garranchos mal rimados
entre os avisos sonoros do metrô?

"Crianças são imprevisíveis"

Eu também, moço.

Agora mesmo, tem uma vontade de ação
explodindo dentro de mim.

Mas primeiro preciso ir ali curar
os pontos mal costurados
e cicatrizar as narinas
pra voltar a farejar bem.


Fiando dramaticamente

Tecer
um figurino justo
nos pontos delicados - cuidado
nos pontos de resistência - força
nos pontos fracos - abraço.

Inventar
um personagem complexo
que nos diálogos quebre as paredes
e na presença se conheça por dentro
e no contato seja um pouco o outro.

Limpar
a cara e as olheiras dos excessos
das maquiagens estratégicas da fala
dos modelos enlatados da cabeça
das expectativas e acordos do silêncio.

Limpar, inventar, tecer
junto e só
uma vida colada na vida,
recriada, sonhada, minuciosamente erguida
sobre a base de um monumento ao
con
fiar.

E fiar - antes -
com
igo
insistentemente.

sábado, 17 de maio de 2014

Espelhar - atravessar


Corpo-espelho
Nos seus olhos de sol
me revelo
imagem nítida do eu
sobreposta ao mundo embaçado

Alguma violência no abraço
espelha tanta violência repressiva na vida
E, por outro lado - conforto -
me isola e refugia.

Me vejo tão profunda no reflexo
que me assusto, reajo, nego
E, por outro lado - conforto -
me apaixono e apego.

Seu rosto contra as luzes dos prédios
É meu rosto contra as nuvens confusas
Seu corpo exausto das lutas de todo-dia
É meu corpo cansado do enfrentamento cotidiano comigo

Você - eu - me move e me conforta
Me raiva, me medo, me amor sem fronteira.
Me pára.




e impulsiona.

Sim, se quebro o espelho, rompo a pausa.
Mas pauso também o movimento.

Haverá - logo, urgente - meios de atravessar o espelho
e estabelecer um equilíbrio dinâmico?

Poema-melancolia-da-pedra-na-minha-cabeça



Eu queria ter atirado uma pedra
Uma, pelo menos.

Na cabeça.

Na cabeça da Copa, na cabeça da FIFA, na cabeça da especulação imobiliária, na cabeça dos ordenadores de despejos, na cabeça dos que executam despejos, na cabeça dos queimadores de favelas, na cabeça dos cabeças-de-planilha, na cabeça dos medrosos encatracados, na cabçea dos privatizadores de corpos e vidas alheios.

Mas a mira não tava boa.
E eu não consegui acertar na cabeça,
tantas cabeças que a cabeça era.

A pedra, então, atingiu o vidro do banco,
Não, quer dizer, o vidro da loja de televisão,
Não, quer dizer, o vidro da viatura.

A pedra, na verdade, nem saiu da minha mão.
A pedra - que pena! - nem saiu do pavimento.
Meu corpo - que peso! - nem saiu do trabalho a tempo.
Tão eficaz foi o policiamento
Em sua função de sufocar - a gás - vidas e pedras
E mantê-las - as vidas e as pedra - longe dos vidros.

E devolver a multidão
pra fora das ruas
E correr logo com as vidas
pra dentro da prisão domiciliar
dos cantinhos privados.

...cada vez mais cantinhos.
...cada vez mais privados.

Em processo

Sobre  a estabilidade
sua inexistência, nossa insistência

Sem parada.
Não tem estação, cais, recreio, ponto de ônibus.
Não tem banquinho com encosto pra sentar e olhar
a gente mesmo passar.

O movimento - nos pés e no peito -
é cambalhota até a tontura repetida,
balanço de frio na barriga,
7 curvas de estrada estreita,
trens que se cruzam no auge da velocidade,
espiral compulsória.

A estabilidade - nos pés e no peito -
não combina com o tempo
não combina com o vento
não combina com o som
das asas
dos seres novos
batendo.

É impossível
- ou é busca, ou ilusão, ou vício
e nos três casos, é mentira,
é loucura admitida
como um horizonte emoldurado
que aprisiona o próximo passo.


segunda-feira, 12 de maio de 2014

Pedacinhos de pessoa desencontrada do seu poder

No ringue

Dente de leão
Origami de papel de seda
Pólen

Meus farelos caminham
sobre saltos
sobretudo
cachecol e óculos escuros
maquiados

O cheiro cítrico
da força dos novos cachos
ilude os outros, me golpeia

Parece
que venci o mundo
Enquanto sangro no chão
esperando o juiz contar até mil.


***

Cimento


"Quem você pensa que é?"
Pergunto eu,
pra mim,
enquanto o ônibus chacoalha
minhas fraquezas
de estômago vazio
e anemia na alma.

Alma?
Sorrio. E chorro. Só por dentro.
Economizo as expressões dramáticas
e reservo o sorriso pras mentiras mal contadas
com que convenço os de fora
depois ensopo o travesseiro

As pedras na mochila já são cimento
Todos os de fora sofrem, surtam,
Eu não, eu aguento;
Eu-cimento.

Quanto mais as minhas fronteiras
se diluem a olhos vistos,
mais se estreitam e esmagam
o desejo de heroismo.

terça-feira, 22 de abril de 2014

De hora em hora

***

Eu até que sou boa de me amar
é só que tem hora que eu esqueço como faz.

***

Falta muito?
Quanto tempo falta, mãe?
Pra estrela escutar o desejo
E o mundo ter a boniteza dos 100 beijos
Que eu contei ontem à noite sorrindo com as orelhas?

Quanto tempo falta, mãe?
Pra chegar naquela terra fértil,
Onde brotam os amores livres
Dos pulmões dos seres inteiros?

Quanto tempo falta, mãe?
Pros motores morrerem,
Os calos nos pés se curarem,
E a gente correr de mãos dadas no asfalto quente?

Quanto tempo falta, mãe?
Pra ninguém ganhar a Copa,
Pra ninguém perder a casa,
Pra ninguém fingir que esqueceu no que acredita?

Quanto tempo falta, mãe?
Pra gente brincar no balanço novo,
Procurar os ovos com dicas que rimam,
E dormir abraçados em hipopótamos roxos?

Quanto tempo falta, mãe?
Pro tempo de ter tempo chegar,
Pro lugar de existir aparecer no horizonte,
Pra eu sonhar - sem amarras no real - outra vez?

***

De hora em hora

De hora em hora
Eu viro uma, viro outra
E me desconheço.

De hora em hora
Eu mudo a cara, mudo a roupa
E me reconheço.

De hora em hora
Parece que eu deixo escapar pedaços de histórias de que me faço.
Escapam como bolhas - umas voam mais, outras explodem assim que saem pelos olhos.

De hora em hora
Parece que deixo escapar pedaços de toda a boniteza que espiei por aí

E, então, pelo outro canto do olho, molhadas, saem as dores e as mágoas
- tantas, que afogam a boniteza e eu não vejo mais nem a lua no céu cinza do quintal.
- tantas que eu nem lembrava, nem sabia
ou se sabia, se lembrava, fingia
que não era em mim
que a dor-memória morava.

De hora em hora
Eu me vejo multiplicada nos outros
Todos!
Todos!
Sentindo-nos rejeitados, solenemente,
uns pelos outros.
Rejeitados.
De hora em hora, o tempo todo.

(Menos nos espasmos de amor-de-olhos-fechados - em que, fechados, os olhos costumam olhar pros mundos que ainda não são)


Quase como se fosse

Às vezes acho graça,
Às vezes me despedaço.

De 10 pedaços que me faço,
10 têm seu rosto,
E, cada 10 tem mais mil pedaços
- de planos, de trecos, de cacos.

- de coisa-sonho-doce
que a gente provou
ou que imaginou tão-tão forte
que é quase como se fosse.

Se acaso o mundo girar ao contrário
e os botões de violeta
florirem nos vasos
quem sabe eu pego a bicicleta
quem sabe despenco de cima do armário a maleta
e saio colhendo os frutos
que esquecemos pendurados
na beira da estrada...


***

Vida polenta

Te espero
Te acalmo
Te acelero
Te apresso
Te abraço
E te troco pelo travesseiro

Te encontro
Te perco
Te acho
Te escondo
Te corro
E te troco por um café

Te paro
Te espremo
Te multiplico
Te reduzo
Te canso
Te descanso
Te frustro
Te surpreendo
E te troco por um plano novo

.

Cotidiano - e - susto
Planejamento - e - ímpeto
Receita - e - improviso

"Bota mais leite nessa massa da vida pra ela amolecer!"
"Paciência e deixa amolecendo na água quente!"
"Derrete a vida com um pouco de açúcar pra fazer calda de pudim!"
Não adianta, gente, que a vida é dura.

E coméquefaz pra toda essa vida que pulsa em mim
caber no tempo?

Se o tempo que se tem é o que sobra de ficar não-sendo?

terça-feira, 25 de março de 2014

febre e termometro

matemática 


são 10 já
e amarelas
as rosas
mais 2 botões e folhas incontáveis


são 2 já
e laranjas
as paredes
mais duas janelas e sonhos incontáveis


são 5 já
e sem cor
as frustrações
mais duas lágrimas
e novas expectativas incontáveis


e eu que nunca pensei
que amar demais fosse enfrentar-se tanto. 


... 


em mim


eu deitei
- na cama, na grama, na rede -
pra sonhar comigo 


eu parei
- o dia, o metro, a canção -
pra lembrar de mim


eu fechei
- os olhos, a porta, a coba o laptop -
pra olhar pra dentro de mim 


eu floreci
- margaridas, rosas, girassóis, mundo novos -
pra me amar a mim 


sonhei lembrei,  olhei,  amei

você em mim
e floreci 


...


colonia 


os planos de vocês me colonizam
os imaginários de vocês me colonizam 


os ímpetos que explodem de dentro de mim disfarçados de minha natureza me colonizam 


as casas, os carros, os carinhos, os violoes, os escritos, as notícias, os trabalhos, os dinheiros, os pintos de vocês me colonizam 


eu sou "una colonia en busca de liberación"
e essa liberdade que parece morar no outro
é tão sonho, que é ilusão
e vira rio quente
que afaga depois afoga


eu sou "una colonia en busca de liberación"
e a liberdade mora em mim e sou eu 


- eu sou um monumento a liberdade -
só que ainda tô em construção.


...


coincidência 


. no exato mesmo ponto em que sou muralha sou rachadura estrutural . 


nós e nossos nós

quando ele desperta
é o próprio dia que se abre
no abrir das suas pálpebras
é o sol que se revela
e espelha o meu sonhar

acordo
e sou ele.

quando ela desperta
é a própria vida que se abre
no enrolar das cobertas
é a alegria que se diverte
e ecoa o meu sorrir

acordo
e sou ela.

quando nós despertamos
é o próprio sem-lugar que se desenha
no inventar da pausa
é o possível que se impoe
e explode o meu relógio

acordo
e sou nós.

...no curso do rio...

amor é tempo

é o ponteiro do relógio
rodando em falso

é o ônibus errado
trocado por outro e outro
até o instinto e os pés
acharem o caminho
do teu caminho...

é o cabelo ganhando brancura, a boca ganhando ruga

é o sol nascendo pra nos botar pra dormir

é a paisagem passando lenta na janela

é a vida de um correndo de mãos dados com a do outro

é  um longo sonho nos primeiros minutos do cochilo

é um sorriso breve que vira escultura no lembrar

é um abraço que dura quilômetros...

sexta-feira, 7 de março de 2014

Dos nós

piro

ele tem olhos de horizonte

olhinhos de ver lá na frente
depois da nuvem
depois da fachada
depois da marcha
depois de domingo

quando ele empunha aqueles olhos
motores param
óculos embaçam
cercas derretem
pulmões explodem...

... num suspiro.


***

troca de pele

olho horas pros seus olhos
            - e eles são tantos.

suas pernas
- uma multidão de pernas
que caminham enfileiradas sob apitos,
cabeças baixas, punhos erguidos.
carregando toneladas de dúvidas.

movem-se de costas
ameaçam correr
desejam chegar lá
antes do tempo.

seu peito
ao lado de outro e mais outro
intercala risos e lágrimas
queima violentamente as pontas dos pelos

sua pele
colada na vida como pétala
finge acreditar
que não mais acreditará
trabalha pra não gostar
do arrepio do já conhecido
- gasto, amado -
rito.

sua nova pele
- dolorida -
despreza o antes
chora o agora
acredita de novo
ama de novo
arrepia
e sua
- o sal de ontem diluído na água da nova fonte
de onde você flui.


***


junta tudo
eu olho sua silhueta
contra a multidão desfocada
de Carnaval e metrô
de batucada e ruído de trânsito

   - e vejo casa -

   eu quero ver rua
  - mas vejo casa -

  eu quero ver agora
  - mas vejo sempre -

  eu quero ver enxame
  - mas vejo casulo -

  eu quero ver cipó
  - mas vejo laço -

  eu quero ver desafio
  - mas vejo abrigo -

QUAL A PALAVRA-CORPO QUE PODE JUNTAR
casa com rua
agora com sempre
enxame com casulo
cipó com laço
desafio com abrigo
eu-com-você, você-com-você, você-comigo?


domingo, 2 de fevereiro de 2014

trabalho de ser em movimento

a gente se faz
em relação.
em conflito,
em dor.
em alegria, tesão, raiva, amor,

a gente se faz.
e refaz.
todo o tempo.
movimento.

e se frustra.
e cara na parede.
e se mente, se engana, se perde, se encanta.

mastiga o eu dos ontens - as lágrimas, gozos, sonhos, medos de ontem
pra alimentar os eus dos amanhãs - as lágrimas, gozos, sonhos, medos de amanhã.

sonha os eus de hoje pra despertar os eus de hoje mesmo.

é repetitivo e penoso o trabalho de ser. trabalho que é.
e também surpreendente e fabuloso. movimento que é.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

te remo

ei, você,
que passou a morar em mim
bem enquanto eu morava no movimento...
EU TE AUTORIZO

a mover-se
a amar
a correr
a não pedir autorização
a mudar
a fluir

ainda que o impulso
seja o correr das minhas lágrimas

eu te remo
cachoeira abaixo
e sorrio pro meu próprio medo,
que ficou molhado
junto com o seu cabelo.

eu somos

Viver cada encontro
como se fosse uma brincadeira
em que, ao inventar uma história,

- um contexto
um desejo
um sonho
um começo
um nome -

inventa-se um eu.
Eu sou quem somos.

curtos

fico me procurando

- e me espanto! -

como eu me escondo bem!


***


se eu estivesse em mim
talvez
a gente fosse
um amor de vida inteira.

salto falho

tem um buraco
no meio do meu estômago

ele separa o que eu sinto do que eu penso.


às vezes,
eu jogo nesse buraco tudo aquilo com que eu não sei lidar,
depois passo,
correndo,
fingindo que o buraco nem existe.


outras vezes
acontece que eu salto mal
ou tenho preguiça de saltar.
aí escorrego lá pra dentro
e fico horas procurando um caminho pra sair.
é como um sufocamento
só que calmo.