segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Escritos de ônibus

[São Paulo - Rio de Janeiro]


JANELA

Uma viagem (de ônibus)
Pra trocar de olhos (de vagar)

Um assovio (sem ritmo)
Pra levar a razão pra passear (sem destino)

Eu queria te levar comigo
Mas você só cabe dentro

***

_ Eu gosto de viajar de ônibus por causa dessa sensação das coisas passando, do mundo se movendo...

_ A gente parado e as coisas se movendo...

Que nem quando a vida para de caber na gente e a gente para e ficar olhando pra ela.
primeiro, como quem diz "nem vem",
depois oferecendo um cafezinho, mas já avisando que passar a noite não vai dar porque os neurônios já estão todos ocupados,
depois deixando montar a barraca no quintal - e se precisa de água limpa...
até enfim oferecer travesseiro e cafuné de boa noite.
E, de repente, voltar a se mover junto com a vida, no sono, no sonho.



INSISTÊNCIA

O negócio, meu filho,
é olhar a nuvem da tempestade de logo-mais
e perguntar
"amanhã vai ter Sol?"

***

O caminho da vocação pra ser mais
deve ter algo a ver
com os olhos que procuram
no céu coberto de nuvem de chuva
a única brechinha de Sol,
antes de ele ir embora cochilar
ali do outro lado da cama,
quer dizer, da Terra.

Insistir em ver o Sol - nem que seja revelado pelo azul atrás da nuvem cinza.



FUNDA - um verbo adjetivo

A dor é com a gente
não é com o outro
é só com a gente

A dor funda - de profunda -
funda - de fundar -
pedaços de eu
e joga no mundo
pra ver se brotam

Fundar
- de manifestar o inédito, parente de inventar -
pedaços da gente mesmo
pode equivaler a encontrar
jeitos novos de estar no mundo
que é também um jeito de nascer

Buscar no fundo da gente
A gente mesmo, só que inédito.



ESPELHO DO POSTO

Se desse pra ser uma coisa só
eu não queria.
Ia achar chato.

Mas também ser tanta coisa ao mesmo tempo
tem hora que é complicado

Todo prazer e toda a dor
brigando pelo mesmo poema

como se pudesse caber num só verso - e numa só pessoa -
num único corpo-palavra
amar e partir.

um construir destruindo-se
um sonho-tombo

que culmina em olhar no espelho
e reconhecer-se um monte de gente.



NUVEM

Eu me movo na direção de mim
E às vezes me vejo
EXATAMENTE NO MEIO
entre a tempestade anunciada e garantida
e o horizonte zul dos ultimíssimos raios de Sol

Me inclino e forço os olhos
pra ver se o teu rosto
tá desenhado no escuro de trás
ou no claro dos próximos quilômetros

E ele está em um e no outro

Atrás, é compacto
Pra ali na frente diluir-se em muitos
deixando ver o fundo azul.

Teu rosto é nuvem
E toma tanta forma quanto meu amor.


UM ATO

Um ato
Cheio de som
Barulhento e mal-comportado
Contagiante e insuportável

Um ato
Cheio de amor
Violento e mal-intencionado
Sufocante e incontrolável

Um ato
Cheio de ar
Inflamado
Que derruba árvores e mansões
E assovia.

Um ato
Cheio de vinho
Bêbbado
Que quebra rolha e rolhas e garrafas
E vaza.

...
Um ato
Que inverte o caminho da vida
Quando inverte o jeito de caminhar
...


[Rio de Janeiro - São Paulo]


INCENDIÁRIA

Uma vontade de chorar
até faltar ar e água

Uma vontade de saltar daqui
E correr pela grama
até bater a cara no muro do horizonte

Uma vontade de ir me esvaziando, esvaziando, esvaziando
até virar as pessoas e as palavras e as coisas em volta

Uma vontade de te abraçar
tão forte e por tanto tempo
violentamente
mas sem absolutamente nenhuma pressa
até que o nosso suor vire cola
e depois vire água de mar
e depois orvalho
e depois memória

Uma esperança de que esse calorzinho no peito
incendeie
fogo de verdade, labareda
até queimar as caixinhas todas
e nada mais caber nelas
nem meu medo
[dos incêndios, dos terremotos e das novas construções]


[São Paulo - Americana]


UM POUCO

Se a gente se faz
De tudo um pouco...

um pouco de fuga um pouco de mundo

um pouco de memória um pouco de vento-na-cara

um pouco do outro um pouco do encontro

um pouco do fora um pouco do entre

um pouco do meio-sorriso um pouco do grito

um pouco do faro um pouco do sufoco

um pouco do correr-como-se-fosse-o-último-trem um pouco do esperar-deitado-na-grama-até-que-não-aconteça-nada-por-muito-muito-tempo

um pouco do desejar que tudo suma um pouco do desejar que alguém apareça

um pouco mudar
e muito mudar.



[Bônus de um quintal em Santa Teresa]


FIO DA MEADA

Estar conectado
ao que me inventa a alma
e só
e tanto.

por qual fio?

***

É possível ser o Sol de si?

O que é que vai brotar
do encontro de tanta água dos olhos
com a terra fofa dos próximos caminhos?