segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

o mínimo

que pouco valem as palavras
quando a memória evoca o impossível
quando o que era não tinha nome e o que é não responde pelo nome de futuro

que pouco valem as palavras
quando as bombas explodem lágrimas
quando as ruas explodem festa e a festa de fora não arromba minha porta

que pouco valem as palavras
quando meu corpo e o outro não se tocam
quando, tocando-se, não se tocam
        sonhando-se, não se tocam
        chamando-se, não.

que pouco valem as palavras
sussuros escuros nos respingos de calhas furadas
na chuva breve de verão em terra de rio soterrado

que pouco valem as palavras
- no entanto, somos isso -
é o que tem pra ser.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Encantamento

Encantamento.
Como tirar o cimento?
terra?, catraca?, encanamento?
que controlam o fluxo
impedem os pensares
isolam os encantos
dos lados de lá do agora

Ar.

Como, como levantar as narinas
por entre as grades dos bueiros que nos contêm
e ser, finalmente, mato
dos que dão flores bonitas
nos cantos e nas brechas?

Inescapavelmente

Até queria ser mais você.
Era bonito.
Mas sou inescapavelmente eu.
E não é que não me escape!
Escapo. Transbordo. Desapareço.

Mas o ritmo do meu bater de asas,
tem uns dias,
é demais pra sua calma
pras nossas casas,
pro vagão lotado do metrô de manhã cedo.

Então madrugo.
E minha vontade de vida madruga comigo.
É lágrima minha vontade de vida. É vida.
Você
dorme.
Enquanto a madrugada me lambe, depois me leva.

Tempos-rio

Se a gente quebrasse o relógio
Se a gente comprasse um relógio
Se a gente inventasse um relógio.

Se a gente tivesse tempo
se criasse tempo
coubesse no tempo

Se esse tal de tempo fosse
mais rio
que poeira.

Desencaixe

Desencaixe.

De vida toda.
De tempo e de inteireza.
Toda.
Não cabe
e não poderia caber, né?
Não adianta sentar na mala
amassar o coleguinha no metrô
pedir licença pra emprestar um coração novo
não cabe.

Desencaixe.

Um dia consegue encaixar.
Os saltos altos.
Mas logo entorta.

Um dia consegue desertar.
Os pés descalços.
Mas logo retorna.

Um dia brincar com o tempo.
Amplia a vida.
Mas logo pede desculpa ao relógio e troca o pulso.

Um dia sonha até!
Navega.
Mas não quebra o despertador às 5 da manhã.

Um dia quebra um vidro.
Indigna.
Mas logo bota grade na janela da casa.

Um dia revida a cantada
Oferece a mesma face, virada
No outro, anestesia. Até ri da piada.
 

talvez amanhã

Talvez a chuva.
Talvez nos lave os cabelos
Talvez os medos, os olhos.

Talvez a chuva
Ao nublar os vidros
talvez desembace os sentidos

Talvez a chuva
Derrube os muros
talvez aponto o fluxo

Talvez a chuva
Embale um sono
De talvez despertar. Num amanhã. Outro.


Porcos

Porcos frenéticos
Dançamos sobre o asfalto
Sobre trilhos
Sacudimos as almas
Sorrimos para dentro
Enlouquecemos para dentro

Para fora, o nada.

Tocamos os outros
Mas não nos tocamos - nenhum de nós
Sequer nos vemos.

Em algum canto, um gesto bonito.
Mas sequer nos vemos
Não somos, de qualquer modo,
dignos de sermos vistos.
Somos pedaços. E perdemos pedaços.
A cada estação.