terça-feira, 27 de março de 2012

Escritos curtos de viagem

"Pareceu-lhe tão inútil explicar as coisas pra fora que cogitou ficar uma semana sem falar. Um ano. Então, o telefone tocou, chamando para uma reunião."

"As máquinas, imensas, pareciam esqueletos de dinossauro. O formato, a cor. Mas um esqueleto de dinossauro teria mais sentimento."

quinta-feira, 22 de março de 2012

Rabiscos sobre brilho nos olhos e tamanho do tempo

Aos 16 anos, Ana teve brilho nos olhos e ingenuidade suficientes para perguntar ao seu primeiro patrão: "Por que o senhor rouba as melhores horas da minha vida?". O Patrão riu com surpresa e disse que não seria a vida toda, só alguns anos...


A próxima vez que teve brilho nos olhos, tinha 60 anos e comemorava a aposentadoria com vinho no copo de requeijão. "Até que passou rápido...", pensou. Sentou-se no sofá e morreu do coração.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Isso é comigo

Ela andava no escuro porque era melhor pra conseguir não ver nada.


E pensava nas pessoas próximas a quem mandar um sinal de fumaça pra que pudessem enviar-lhe pelos Correios pedaços de coração.

No fim, não fazia fumaça, nem fogo. Nem acreditava nas pessoas mais. Pelo menos não pra tapar buracos de ar com pedaços de coração.

Tem um certo tipo de intimidade - um tipo que permite prever, reconhecer, esgotar um certo tipo de sensação que vem de-dentro-pra-fora-pra-dentro - que só se tem com uma pessoa: consigo.

Acendeu a fogueira só lá dentro - pra não incomodar a escuridão. Ouviu o próprio sinal de fumaça. E esperou queimar o que já sabia estar seco.

terça-feira, 20 de março de 2012

Da memória dos lugares

Lugares guardam memórias por muito tempo, nos seus contornos, nos seus cantos, nos seus cheiros, nos seus mofos. Às vezes, porém, guardam memórias curtas, substituídas por outras ao longo do caminhar. Outras vezes, ainda, a memória de um lugar se apaga devagar até terminar por completo, como se nosso corpo dissesse: "melhor deixar isso do coração pra fora".


Lúcia vivia numa casa de cercas brancas. Vê-se pelas fotos de criança barrigudinha. Na casa de cercas brancas apaixonou-se pela primeira vez. Na casa de cercas brancas, viu seu pai ser levado por militares para nunca mais voltar. E esqueceu-se do primeiro beijo. Depois lembrou-se. Depois esqueceu-se. Se passasse hoje pela cerca branca, Lúcia veria somente uma cerca branca. Talvez a achasse bonita.

terça-feira, 13 de março de 2012

Sofá

Chega, então, um dia em que a tristeza se senta.


E, como todas as coisas no mundo que não significam uma coisa só, isso significa pelo menos duas coisas:

1. Daí em diante não haverá mais desespero. A tristeza será calma, aconchegante.

2. Ela vai ficar por um bom tempo.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Interlocuções com o Paraguai que o Fabrício está (vi)vendo...

Era uma vez uma moça.
Tinha todas as sortes que uma moça poderia ter, deveria ter. Bonita o suficiente, bem-sucedida-profissionalmente o suficiente, bem-casada o suficiente. Sobre si mesma, construíra dia a dia a imagem da realização. E construíra-se sobre esta imagem. Até nascer a primeira ruga, a primeira demissão para ser substituída por um homem, a primeira desconfiança de "traição". E, se não podia mais ser a imagem pura da realização, o que lhe restaria? Sua identidade dissolveu-se.

Era uma vez um país.
Tinha todos os problemas que um país poderia ter, deveria? Tinha perdido guerras o suficiente, terras o suficiente, patriotas o suficiente. Sobre si mesmo, construíra século a século a imagem da derrota. E construíra-se sobre esta imagem. Até perder mais uma disputa, até que um vizinho lhe roubasse novos territórios líquidos, até perder mais patriotas virando cruzes na beira das estradas. E, se não conseguia mais desejar outra imagem que não a imagem da derrota, o que lhe restaria? Sua identidade fortaleceu-se.

Era uma vez uma forma de vida.
Tinha todas as contradições que uma forma de vida poderia ter, todas? Tinha crueldade o suficiente, desejos o suficiente, frustrações o suficiente. Sobre si mema, construíra a imagem do natural. E construíra-se sobre esta imagem. Até despontar alguma bondade, até realizar-se algum desejo, até vivenciar inteiramente alguma frustração. E se, confrontada consigo, não podia mais ser a imagem do natural, nem desejar ser qualquer outra imagem pura, o que lhe restaria? Sua identidade transformou-se. E de novo. E de novo. E de novo. E reconstruiu-se sobre a imagem da realização, da derrota, do naturalmente mutável.