2012 – um ano em mim
2012 – um ano em mim
Não é à toa
que eu começo triste essa escrita.
Se a
tristeza é o que move a escrever, é também o que transforma mais profundamente.
O aprender
é dor porque é, na verdade, desaprender. Foi assim que a Valéria me ensinou. É
arrancar de algum lugar bem profundo na gente, à força, os infinitos convites e
intimações a sermos o que não somos.
2012 foi o
ano em que perdi algumas muletas e derrubei outras. E a sensação de ficar sem
muletas é igualmente a de voar e a de cair – a ausência de limite e o limite do
eu-só.
O parceiro
Filho de
índio-português com jornalista. Cabeludo e alto, imenso.
Meu
parceiro me ensinou a ser mais leve e a defender, profissionalmente e
seriamente, a leveza dele. E, consequência, garantir a minha.
Nunca, nem
nos dias de chuva, nem nos dias de falta de grana, nem nos dias de solidão, nem
nos de jogo do Curíntia, nem na despedida, nós estivemos tristes. Embora minutos
antes, minutos depois, agora, sim.
Nunca, nem
nos dias de insinuação do melhor garçom do mundo de que nascemos um pro outro,
nem nos dias de carência, nós fomos mais que parceiros. E isso era muito.
Daí um dia,
o parceiro foi lá. Ele decidiu e foi. E aquilo foi tão pesado em mim e tão leve
nele que eu entendi nossas distâncias. Ele não era espelho. Era outra coisa.
Um dia ele
decidiu voltar e voltou. E decidiu ir embora de novo e foi. E voltar de novo, e
voltou. Mas nunca voltou. Aliás, voltou E não voltou.
Porque
aquele tempo foi aquele tempo.
Porque ele
era muito mais do-mundo do que eu jamais saberei ser.
E foi isso
que ele me ajudou a arrancar de mim: a pretensão de ser leve, livre, do-mundo
de um jeito que eu não sou. E a própria preocupação com isso. Arrancar, lá bem
do fundo, a incapacidade de conceber que decidir ir e ir pode ser simples.
*
O apêndice
Trabalhar
pra esquecer. A própria receita da tragédia. Não há nada que possa ser
realizado com beleza e verdade a partir da fuga, do esquecimento, do afogar-se
esperando que a água liberte do ar.
Intensamente.
Mentirosamente. Nem só as verdades são intensas. Aliás, as mentiras tem tal
capacidade de serem vividas intensamente que suspeito que superem as verdades
nesse ponto.
O intenso
não é, por outro lado, sem fim. E o fim da intensidade pode ser que seja o
vazio. E foi o que sobrou do lado direito inferior da minha cavidade abdominal.
Eu queria
dizer pra médica que ela precisa ter mais cuidado. Mas primeiro teria que dizer
isso pra mim.
Eu queria
dizer pro João que as aulas dele foram a única coisa que teve sentido de
verdade naqueles dias. E os olhos dele: cheios de futuro.
Eu queria
dizer pra minha mãe que ela estava mais pálida que eu e que mesmo assim seria
bonito ela sorrindo no vídeo-besta de despedida que eu gravei antes da
cirurgia.
Eu queria
dizer pra enfermeira que me tratou mal (antes de eu chorar) e bem (depois de eu
chorar) que ela me fez entender muitas coisas. E queria saber se ela chora ou
tem vergonha de chorar.
Eu queria
dizer pra enfermeira que me chamava de Garota que ela é a vida mais forte que
eu vivi ali e que quando ela tirou o “breno-dreno” de mim, ela me ajudou a
terminar de arrancar umas tantas mentiras e deixar espaço lá dentro pra vida. A
principal mentira que a gente arrancou juntas – eu sofrendo, ela sorrindo – foi
a de que a autossuficiência é possível. A autonomia é possível. A
autossuficiência é máscara.
*
A menina que roubou o sol, mas esqueceu de
levar
Ela ainda
fez a boniteza de não ir num domingo.
Mas,
depois, vieram tantos domingos...
Ela fez
despedidas bizarras que me mostraram que ela, também, não era espelho. Era
outra coisa.
Eu não
consigo lembrar do nosso último abraço.
Dele, eu
fui pro frio e ela também. E o sol sumiu, não foi com ninguém.
A gente
ficou sem ter pra quem perguntar se o pimentão tava cortado muito grande, muito
pequeno ou tava óoooootimo assim.
Eu chorando
aqui, sem nem cachaça pra comemorar que o preço do ônibus abaixou por pressão
popular. Ela chorando lá, com vinho de 4 euros pra comemorar o frio do
não-compartilhamento da vida. E a gente nem pode misturar as lágrimas pra, sei
lá, ver com que gosto fica. Ver se mistura a minha crença com a descrença dela.
Naquele dia
lá bem-antes, era só uma noite-besta de samba na vila dos ricos descolados que
falam de Cuba como se falassem da casa na praia, com aquela falsa indignação
que é pior que a falta de indignação completa ou com aquela falsa esperança no
mundo que é pior do que a desesperança completa.
Naquela
noite, chorando rios e xingando todo mundo, ela me arrancou lá de dentro a
minha descrença e ficou com toda ela. E agora eu tenho fé. E ela continua sendo
a pessoa, entre as que eu amo, mais verdadeiramente cética.
A memória no muro
Eu perdi a
conta de quantas vezes e de quantas cores imaginárias eu pintei aquele muro com
pincel molhado na água dentro do pote de margarina.
Os muros
são memória. Mas só enquanto são. Hoje, mesmo antes de eles caírem, eles já são
outros, já não estão recheados das lembranças que eu vivi nem das que eu
inventei.
Tia Marina,
no seu atravessar o muro da vida, me arrancou a memória do muro. Atrás dela, as
memórias dos muros que virão.
[Lagartixa
Quando um
ser humano que faz parte das nossas memórias, ou mais até, que guarda em sua
existência mesma pedaços preciosos de memória... quando esse alguém
"acaba", isso cria vontade de silêncio, papel e caneta. E faz desejar
uma capacidade de guardar tudotudotudo numa memória infinita. Que não temos. E
a gente perde. Perde a pessoa, perda uma parte da vida, que vai com ela. E
ganha uma sensibilidade imensa para a vida que está e para a memória que
estamos construindo todo dia.
Dizendo
tchau com água-de-olhos e silêncio, escrevi isso, tia. Ó:
"A
memória mora nos espaços, mas não prescinde das pessoas porque precisa da troca
para manter-se viva.
A memória
dá vida às pessoas que dão vida à memória que dá vida.
A memória
mora na casa-de-vó, na cristaleira, nas palavras "alegria de viver"
que nós trocamos, na louça lavada perfeita secando no sol - primeiro os copos!
- mas vive mesmo no cheiro amargo-dooooce de café, no som doooce-amargo da voz
que a gente sente/escuta mesmo que já não haja.
A memória
dorme. E acorda pra viver diferente de novo. E de novo. E se despedaça. E de
cada pedaço nascem memórias novas. Igual lagartixa."
Um
pouquinho da memória que compartilhamos, o que coube, vive e se mexe aqui
dentro de mim, tia. E, aliás, vai rodar comigo por aí, porque, você sabe e
dizia: eu tenho rodinhas nos pés.
Da varanda
Daqui a um
pouco de tempo, alguém vai olhar da varanda, sentado, e verá um muro. Talvez um
portão.
Se houver
varanda. E se houver onde sentar na varanda.
Daqui a um
pouco mais de tempo, alguém vai olhar da sacada do apartamento em cima da
antiga varanda, sentado, e verá, de cima pra baixo, a árvore ali da frente, a
copa larga, velha, abrigo.
Se houver
onde sentar na sacada. E se houver a árvore.
Daqui a um
pouco mais de tempo, alguém, indo fechar a porta e a cortina da sacada do
apartamento em cima da antiga varanda, porque em frente haverá outro prédio e
não fica bem uma pessoa ver dentro do apartamento da outra, vai olhar de trás
da porta, pelo meio da cortina, da sacada do apartamento em cima da antiga
varanda, e não verá nada.
Os olhos
que moraram naquela antiga varanda, sentados, namorando a rua, viram muito,
viram tudo, viram a vida. É de uma responsabilidade inassumível sentar e olhar
daquela varanda. E ver o jardim que criança não pode mexer, o pote de margarina
de dar água pra passarinho, o balanço improvisado e o pote de margarina de
pintar o muro de cor de água, de cor de muro. E ver as rosas. (Haverá rosas?
Haverá quem veja as rosas?) E ver os vizinhos mais irmãos que os irmãos e as
casas descascando as tintas das paredes, as folhas e flores e os barulhos dos
carros. As folhas caindo pra alguém não varrer hoje que o sol está forte e,
afinal, já lavaram com água o quintal de cimento. E ver o sol forte alegrando
os passarinhos. E ver o sol se pôr, a vida começar e terminar.
Os olhos
que moraram naquela antiga varanda, sentados, namoraram a vida. E viram,
cheiraram, escutaram, perceberam, silenciaram que a vida... isso tudo que se
viu daquela varanda e que daqui a um pouco de tempo não se verá... é coisa tão
pequena e tão grande. Tão muito e tão pouco. É coisa de se olhar por uma vida
toda pra entender.]
O companheiro
Ele era-é
eu. Era-é São Paulo. Era-é o teatro, a comunicação, o sexo, o centro-velho, a
cerveja, as vitaminas, as caminhadas, a bicicleta, o vento.
E, bem juntinho com o vento, planejei a libertação. E a libertação aconteceu. Foi tanto! Pra ele, que era-é eu, e pra mim. Aconteceu e é só a gente olhar de cima, do elevador panorâmico do depois-de-um-tempo.
A
libertação teve sol, Galeano, geleiras, nevezinhas, cordilheiras, caronas. Teve
filhotes de ano-novo e depois não teve mais. E teve até falta de amor, mentira e choro com água de coco no meio da rua.
Aí ele voltou. E foi aí que ele foi. E, nessa ida, me arrancou o gato e o chão – ambos com o meu pleno consentimento. O chão. Aquela coisa ali nos fundamentos da gente que, ao mesmo tempo, nos dá a confiança de saltar pro vôo e o conforto de nem querer saltar. Sem o chão, me sobrou tudo. Tudo o que não é o chão. E que é, igualmente, voar e cair.
Aí ele voltou. E foi aí que ele foi. E, nessa ida, me arrancou o gato e o chão – ambos com o meu pleno consentimento. O chão. Aquela coisa ali nos fundamentos da gente que, ao mesmo tempo, nos dá a confiança de saltar pro vôo e o conforto de nem querer saltar. Sem o chão, me sobrou tudo. Tudo o que não é o chão. E que é, igualmente, voar e cair.
Eu
agradeço.
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