sexta-feira, 15 de abril de 2016

antes de ir

eu queria sair daqui
daqui de onde é preciso
gritar
pra ouvir

daqui de onde é preciso
estocar carinho
pra não morrer de falta de atenção

daqui de onde é preciso
ter medo e defender
com dentes
os pedaços de coração espalhados

daqui de onde é preciso
mirar entre grades
pra tocar pássaros
que tocam o azul
e sentir bem de longe o que é voar
daqui de onde é preciso
ser menos
pra caber no ônibus lotado
no posto de trabalho
na expectativa de vida pronta
no cotidiano, na cama, na conta
no espaço de vida limitado
que o outro oferece, desconfiado
nas poucas horas de sono fritado
nos bancos de praça sem encosto
nos vizinhos sem rosto
n almoço meia hora
sem mãos, sem gosto

sair daqui
de onde é preciso
mentir
de si pra si sobre si
pra existir
um pouco, torto, morto

eu queria sair daqui
daqui de onde é preciso
prender a voz
ficar a sós
prender a dor
e ser um silêncio pesado
obeso
silêncio preso
maltratado
um silêncio-tortura
um silêncio de prender palavra.

eu queria sair daqui
daqui de onde é preciso
escolher uma única cor
escrever nos postes desespero
implorando mais amor
chorar baixo para não despertar
os monstros, os abismos, os pavores
os desabamentos, os motores
chorar de cara no travesseiro
para alagar a alma
antes do fogo tomar a casa
chorar agarrando cada lágrima
para reservar água
chorar sufocando o grito
pra não acionar os alarmes
nem os ódios
enquanto os rancores
destroem a cozinha
e os restos são só restos e restos de ninguém.

eu queria sair daqui
de onde é preciso apegar-se
ao carro, ao amor, ao cadeado,
ao aniversário, ao microfone,
ao palco, ao pouco, ao meu,
ao tolo, ao mínimo,
à cama - última gota de suave na manhã seca.

eu queria sair daqui
de onde é preciso
ordernar, explorar,
controlar, dominar,
enganar, desempoderar,
amedrontar, afastar
de onde é preciso
privilegiar,
distinguir,
valorar
de onde é preciso pódio,
mistério,
escuridão,
mentira, mentira, mentira,
escravidão,
de si e tantos

eu quero sair daqui
de onde é preciso
prender-se ao pouco
de medo do pé no chão
da cara no barro
da mão estendida
daquilo que podem fazer
com o que você entregar
de si
daqui de onde é proibido
ser frágil
ser doce
ser aberto
ser pássaro

eu quero sair daqui
sobrevoando tudo isso
a despeito do peso
triste
do meu próprio casco
sobrevoando o rio
que alimentei mar com meu sal
sobrevoando o fio
que me liga a todo
pequeno amor comum
a toda migalha
de acontecimento
ao menor sinal
de vida pulsante
que eu possa ter
- olhos arregalados, sorriso firme -
testemunhado
antes de ir.

(quando foi que me tornei covarde?)

como se...

como se fosse possível
como se fosse aqui
como se estivesse ao alcance

como viver nesse um outro mundo
como não se sentir só
como ser fios de um baita nó
como ser tecido, rede, junto

como poder encontrar
o ser mais e o estar presente
como celebrar o comum

como estar em si e além e livre e seguro
como se ver dentro e fora de um corpo uno
como expandir-se em todo o outro
como aumentar e arrebentar o muro
de ser só um

como viver uma aldeia
como amar do tamanho do nós
como sem fechar os olhos já sonhar
como tocar cada outro
saindo de si
sem sair do lugar

acalmo

são mãos
e dançam como sombras

são mãos
e tantas! que sua coreografia toma tudo

são mãos
e se tocam suavemente sonhando ser lençol

são mãos
e suas sombras, ruas, ondas, laços
fazem música, marcam compasso, soam no piso
e ouço
ouço as mãos de uma multidão de eus
e acalmo.