terça-feira, 31 de julho de 2012

Lagartixa

Quando um ser humano que faz parte das nossas memórias, ou mais até, que guarda em sua existência mesma pedaços preciosos de memória... quando esse alguém "acaba", isso cria vontade de silêncio, papel e caneta. E faz desejar uma capacidade de guardar tudotudotudo numa memória infinita. Que não temos. E a gente perde. Perde a pessoa, perda uma parte da vida, que vai com ela. E ganha uma sensibilidade imensa para a vida que está e para a memória que estamos construindo todo dia.

Dizendo tchau com água-de-olhos e silêncio, escrevi isso, tia. Ó:

"A memória mora nos espaços, mas não prescinde das pessoas porque precisa da troca para manter-se viva.

A memória dá vida às pessoas que dão vida à memória que dá vida.

A memória mora na casa-de-vó, na cristaleira, nas palavras "alegria de viver" que nós trocamos, na louça lavada perfeita secando no sol - primeiro os copos! - mas vive mesmo no cheiro amargo-dooooce de café, no som doooce-amargo da voz que a gente sente/escuta mesmo que já não haja.
 
A memória dorme. E acorda pra viver diferente de novo. E de novo. E se despedaça. E de cada pedaço nascem memórias novas. Igual lagartixa."

Um pouquinho da memória que compartilhamos, o que coube, vive e se mexe aqui dentro de mim, tia. E, aliás, vai rodar comigo por aí, porque, você sabe e dizia: eu tenho rodinhas nos pés.

Perdido no caderninho vermelho...

... não me lembro mais de onde tirei... mas vou compartilhar assim mesmo:

"Tristeza não é desalento da alma, é um duende que ataca ao encontrar aberta a porta do desgostar de si mesmo. O remédio é recolher-se no silêncio e desamarrar um por um os cadarços do egoísmo até os pés poderem andar na direção do outro"

(Frei Betto)

domingo, 8 de julho de 2012

Leitura em voz alta destes dias

Penso que leituras só fazem verdadeiro sentido no momento exato. Especialmente aquelas em que as palavras trazem poesia. Ontem, hoje e os amanhãs imediatos deram sentido pleno à leitura em voz alta disso:

"Há mágoas íntimas que não sabemos distinguir por o que contêm de sutil e de infiltrado, se são da alma ou do corpo, se são o mal-estar de se estar sentindoa futilidade da vida, se são a má disposição que vem de qualquer abismos orgânico - estômago, fígado ou cérebro. quantas vezes se me tolda a consciência vulgar de mim mesmo, num sentimento torvo de estagnação inquieta! Quantas vezes me dói existir, numa náusea a tal ponto incerta que não sei distinguir se é um tédio, se um prenúncio de vômito! Quantas vezes...

Minha alma está hoje triste até ao corpo. Todo eu me dôo, memória, olhos e braços. Há como que um reumatismo em tudo quanto sou. Não me influi no ser a clareza límpida do dia, céu de grande ar puro, maré alta parada de luz difusa. Não me abranda nada o leve sopro fresco, outonal como se o estilo não esquecesse, com que o ar tem personalidade. Nada me é nada. Estou triste, mas não com uma tristeza definida, nem sequer com uma tristeza indefinida. Estu triste ali fora, na rua juncada de caixotes.

Estas expressões não traduzem exatamente o que sinto porque sem dúvida nada pode traduzir exatamente o que alguém sente. Mas de algum modo tento dar a impressão do que sinto, mistura de várias espécies de eu e da rua alheia, que, porque a vejo, também, de um modo íntimo que não sei analisar, me pertence, faz parte de mim.

Quisera viver diverso em países distantes. Quisera morrer outro entre bandeiras desconhecidas. Quisera ser aclamado imperador em outras eras, melhores que hoje porque não são de hoje, vistas em islumbre e colorido, inéditas a esfinges. Quisera tudo quanto pode tornar ridículo o que sou, e porque torna ridículo o que sou. Quisera, quisera... Mas há sempre o sol quando o sol brilha e a noite quando a noite chega. Há sempre a mágoa quando a mágoa nos dói e o sonho quando o sonho nos embala. Há sempre o que há, nunca o que deveria haver, não por ser melhor ou por ser pior, mas por ser outro. Há sempre...

Na rua cheia de caixotes vão os carregadores limpando a rua. Um a um, com risos e ditos, vão pondo os caixotes nas carroças. Do alto da minha janela do escritório eu os vou vendo, com olhos tardos que as pálpebras estão dormindo. E qualquer coisa de sutil, de incompreensível liga o que sinto aos fretes que estou vendo fazer, qualquer sensação desconhecida faz caixote de todo esse meu tédio, ou angústia, ou náusea, e o ergue, em ombros de quem chalaceia alto, para uma carroça que não está aqui. E a luz do dia, serena como sempre, luz obliquamente, porque a rua é estreita, sobre onde estão erguendo os caixotes - não sobre os caixotes , que estão na sombra, mas sobre o ângulo lá ao fim onde os moços de fretes estão a fazer não fazer nada, indeterminadamente."

Fernando Pessoa em Livro do Desassossego