quinta-feira, 21 de julho de 2016

tempo nosso

qualquer pessoa que caminha por um corredor (para o) mal projetado do metrô poderia toma para si um saber feito dessa experiência: quando andamos juntos somos mais lentos. Vejamos, por exemplo, a multidão na transferência entre a paulista e a consolação - caminhamos feito pinguins. Agora, olhemos ainda mais de perto, no detalhe, aquela duas amigas que conversam, juntas por escolha, não por superlotação. De todos os lados, os passos delas são ultrapassados. E o lento ritmo comum entre elas se mantém, ileso. Há mais saberes, então, morando nessa experiência: quando andamos juntas por convicção e, firmes no ritmo comum, permitimos tranquilamente que nos ultrapasse a pressa dos sozinhos que correm em direção ao fim, o tempo é mais nosso. E pode até acontecer de sairmos ilesas.

fora da ordem

quando passa
desfilando
o vigilante
da linha amarela do metrô

eu me sinto como se tivesse algo a esconder.
que sinto como se os olhos dele procurassem algo que eu tivesse a esconder.
eu gostaria de ter algo a esconder.
eu gostaria, mesmo, de estar um pouco mais fora da ordem.

ele passa e só passa
nem desconfia

de repente, parece que o metrô, ele mesmo, e sua voz gravação é que esconde algo e está fora da ordem.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

menos é pouco

O foda é que é difícil - ele disse. E o mundo riu. 

Mas é claro que não tem caminho antes do teu ato.
Mas é claro!
Mas então anda, caminha.
Tá valendo caminhar sem certezas, que a mochila cheia de certezas é pesadíssima.
Mas leva a coragem.
E não me vai esquecer de ir na direção do "ser mais". 
Porque menos é muito pouco.

quarta-feira, 6 de julho de 2016

vira a página

vira a página...

faz um chá,
ioga de manhã.
almoça direitinho,
pedala e cuida das plantas.

vira a página...

espreguiça e come frutas
experimenta outro caminho
outra população neuronal
outro olhar
outro cabelo
outro horizonte

vira a página...


sonha sonhos loucos
não anota
não liga
não cobra
não chora no banheiro
não quer ter razão
não insiste
não toma um porre
não explica
não toma remédio que afaste a dor da cabeça
não põe calça quando quer por saia
não descansa
mas toma sol
e coragem!

vira a página...

lê poemas
escreve mentalmente no chuveiro
marca encontros
traça rotas para fora
faxina na sala e nos medos
lava roupa, toma sopa,
tira o pó
compra um incenso caro

vira a página...

sai andando
sai dançando
sai assoviando
toca violão para ganhar calos novos
toca o terror nos diálogos internos
procura o silêncio dentro
imita os passarinhos
veste a imaginação de azul-céu-de-inverno

vira a página...

quer fazer teatro
desenho
costura
poema
quentão
boca do palhaço com a cara ou as bolas do Cunha

vira a página...

compra uma água de coco
compra uma casa na praia
compra um lenço guerrilheiro
compra um coração sem remendos
compra uma cerveja
um chá de verdade
uma muda de manjericão
uma matrícula na pós-graduação
uma identidade diferente
uma história linear

vira a página...

trabalha na velocidade da luz
e continua produzindo descontroladamente depois que a luz se apaga
trabalha no metrô, no celular, na rua, na cama.
presta concursos, provas, exames, vestibulares, depoimentos
passa nos exames finais, arruma a bagunça, assina os documentos, entrega os pontos.

vira a página...

coloca uma música
coloca o travesseiro no sol
coloca o corpo no sol
coloca os óculos de lado
os cabelos pro alto
um tênis confortável
um colar protetor
uma cor na vida
um sorriso na frente
o incenso caro pra queimar
o despertador pra mais tarde
uma água pra ferver
um novo ritmo

vira a página...

liga pra uma amiga
pra um casinho - ex, futuro, atual
liga o som do celular - pra receber mais mensagens
liga a luz da cabeceira pra tirar selfies novas pra trocar seus eus virtuais
liga pro pai, pra mãe
grava mensagens de voz
visita os bebês
visita os novos olhos

vira a página...

branco
silêncio 
encanto soa

vira a página...

escuta

[o estômago, o vizinho, o projeto, o gemido, o coração, o suor, o riso, o outro]

vira a página...

escuta o branco.
a sombra da ponta
da caneta que é enquanto se escreve.

vira a página...

branco

vira a página...

branco

vira a página...

junta as páginas
cada página é
é cada página
e é todas elas.
- num zumbido de vento bagunçando a ordem do livro sendo escrito

vira a página...

já não há página em branco.
há que escrever-se por cima dos eus já escritos.


ternura

queria que você pudesse ver

a ternura - que brota azul-profundo no ar e afoga as minhas mágoas, que cobre edredon laranja e aquece minhas dores

quando ouço
de rabo-de-olho
sua respiração dormir
ao som...

"the way that we were...
                                          and the way that we wanted to be"

há uma certa distância

há uma certa distância
entre o que ela é
e o que ela sonhava

uma distância
entre o que esperava
e o que recebeu

uma distância
entre o gesto perfeito
e o acontecimento possível

uma distância
- i n t r a n s p o n í v e l -
entre ela e o mundo
- a s s u s t a d o r a -
entre o que pretende e o que dá conta
- q u e n t e -
entre hoje à noite
e o sol nascendo amanhã

há uma distância
- l u m i n o s a -
entre o que ela está
e o que estará após aquela cicatriz.